As investigações da CPI da Pandemia se depararam com fatos que podem caracterizar 29 crimes diferentes, que estão indicados no relatório final da comissão, apresentado pelo senador Renan Calheiros (MDB-AL) na semana passada. De acordo com o texto, o presidente Jair Bolsonaro pode ter cometido nove tipos diferentes de crimes.
Antes de o documento ser entregue às instituições que poderão dar sequência às apurações e, eventualmente, promover a responsabilização dos acusados, ele precisa ser aprovado pela CPI. A votação está marcada para esta terça-feira (26).
O relatório teve como referência, entre outras fontes, o trabalho de uma comissão de juristas, que fez a ligação entre o que foi descoberto nas quebras de sigilo e nos depoimentos com a legislação penal (tanto a nacional como a internacional).
Por estarem relacionadas a leis diferentes, nem todas as denúncias do relatório final da CPI serão remetidos às mesmas autoridades, inclusive porque podem ser julgadas por diferentes colegiados, como o Supremo Tribunal Federal (STF), o Tribunal Penal Internacional e até o próprio Senado Federal.
Para entender melhor quais são esses delitos e como eles podem ir a julgamento, a Agência Senado — com a ajuda do consultor legislativo do Senado Arlindo Fernandes, especialista em direito constitucional — classificou os crimes listados no relatório de Renan em três grupos: crimes comuns, crimes de responsabilidade e crimes contra a humanidade.
Crimes comuns
São aqueles previstos no Código Penal (CP). Perfazem a maior quantidade de crimes identificados no relatório de Renan, que teriam sido cometidos tanto pelo presidente Jair Bolsonaro como por outras 65 pessoas indicadas no documento.
O mais grave deles é o crime de epidemia (art. 267 do CP), que tem pena prevista de 10 a 15 anos de prisão. O relatório destaca que o delito, nesse caso, teve mortes como consequência, o que pode levar à aplicação da pena em dobro. Se ainda for demonstrado que houve dolo (ou seja, que houve intenção por parte de quem o cometeu), o crime será considerado hediondo — e, assim, não poderia haver indulto, anistia, liberdade provisória ou mesmo fiança.
Outro crime citado no relatório é o de charlatanismo (art. 283 do CP), que é caracterizado por prometer ou incentivar a cura de doenças com remédios ou fórmulas sem respaldo científico. A pena prevista nesse é de detenção de três meses a um ano, além de multa.
Também está apontada no documento a infração de medida sanitária preventiva (art. 268 do CP), que é caracterizada quando se desrespeita determinação do poder público "destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa". A pena é de detenção de um mês a um ano, além de multa.
Outros crimes comuns elencados pela CPI:
- Falsidade ideológica (art. 299 do CP): ocorre quando se omite ou se inclui declaração falsa em documento. A pena prevista é de até cinco anos de reclusão e multa, em caso de a falsidade ocorrer em documento público, e de até três anos, nos documentos particulares.
- Corrupção ativa (art. 333 do CP): ocorre quando alguém “oferece ou promete vantagem indevida a funcionário público”. A pena é de reclusão e varia de dois a doze anos de reclusão, além de multa.
- Incitação ao crime (art. 286 do CP): quando se estimula pessoas publicamente a cometer crimes. A pena é de detenção de três a seis meses ou multa.
- Falsificação de documento particular (art. 298 do CP): o crime teria sido praticado por consultor do Tribunal de Contas da União (TCU), que produziu um estudo que foi divulgado por Bolsonaro como se fosse um documento oficial desse órgão. A pena nesse caso é de um a cinco anos de prisão, além de multa;
- Emprego irregular de verbas públicas (art. 315 do CP): quando há aplicação de recursos do orçamento público em ações diferentes do que estava determinado pelas leis orçamentárias. A pena é de detenção de um a três meses ou multa;
- Prevaricação (art. 319 do CP): quando um funcionário público não cumpre sua obrigação ou se omite de cumpri-la. A pena é de detenção de três meses a um ano, além de multa.
Crimes contra a humanidade
Os crimes contra a humanidade são ataques generalizados a qualquer segmento da população civil, com uso de armamento ou não. Esse conceito vem do direito penal de guerra e faz parte do Estatuto de Roma, que criou o Tribunal Penal Internacional (TPI), que funciona em Haia, na Holanda. Ele teve origem na Comissão de Direito Internacional da Organização das Nações Unidas (ONU) e já foi assinado e ratificado por 122 países, inclusive o Brasil, que incluiu o texto no seu ordenamento jurídico em 2002 (por meio do Decreto 4.399, de 2002).
De acordo com o estatuto, os crimes contra a humanidade são divididos em modalidades, como homicídio, escravidão, extermínio, deportação ou transferência forçada de população, agressão sexual, desaparecimento forçado de pessoas, perseguição e tortura, entre outros.
O relatório final da CPI sugere o indiciamento de Bolsonaro por crimes contra a humanidade por: extermínio (art. 7º, parágrafo 1, b); perseguição (art. 7º, parágrafo 1, h); e atos desumanos para causar sofrimento intencional (art. 7º, parágrafo 1, k).
Segundo o Estatuto de Roma, “extermínio compreende a sujeição intencional a condições de vida, tais como a privação do acesso a alimentos ou medicamentos, com vista a causar a destruição de uma parte da população”. Já por perseguição entende-se a privação intencional e grave de direitos fundamentais em violação do direito internacional, por motivos relacionados com a identidade do grupo ou da coletividade em causa.
A pena para esses crimes depende da gravidade e pode ir até a prisão perpétua e a perda dos bens do condenado.
Durante os debates no Senado que levaram à aprovação, em junho de 2002, do projeto de decreto legislativo que ratificou o Estatuto de Roma, o então senador Roberto Saturnino disse que a criação do Tribunal Penal Internacional era um "marco na evolução da humanidade". Ele ressaltou que, até então, eram aceitas no mundo práticas como a escravidão e a tortura, atualmente repudiadas pela comunidade internacional.
O então senador José Fogaça afirmou que o julgamento, na Europa, do ex-presidente chileno Augusto Pinochet poderia ter sido feito naquele tribunal, caso ele já estivesse em funcionamento. Fogaça destacou na ocasião que "direitos humanos não são apenas questão de ordem interna dos países; são uma questão da humanidade".
Crimes de Responsabilidade
De acordo com o relatório de Renan Calheiros, o presidente Jair Bolsonaro — assim como outros integrantes do governo federal — incorreu em crime de responsabilidade por violar direitos sociais e por agir de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo. O crime, previsto na Lei nº 1.079, de 1950, prevê a perda do cargo e a suspensão dos direitos políticos.
Para chegar a essa conclusão, Renan baseou-se no parecer da comissão de juristas liderada pelo advogado Miguel Reale Júnior e pela ex-juíza do Tribunal Penal Internacional Sylvia Steiner. Para a comissão, os membros do governo federal agiram de forma contrária ao que estabeleciam as medidas propostas pela comunidade científica nacional e internacional.
No parecer que apresentaram à CPI em setembro, esses juristas afirmam que “o presidente da República desrespeitou o direito à vida e à saúde de número indeterminado de pessoas, por via de atos comissivos, ao promover aglomerações, ao se apresentar junto a populares sem máscara; ao pretender que proibições de reuniões em templos por via de autoridades fossem revogadas judicialmente; ao incitar a invasão de hospitais, pondo em risco doentes, médicos, enfermeiros e os próprios invasores; ao incentivar repetidamente a população a fazer uso da cloroquina, dada como infalível, hidroxicloroquina e ivermectina, medicamentos sem eficácia comprovada [contra a covid-19] e com graves efeitos colaterais; ao recusar e criticar o isolamento social e as autoridades que o impõe; ao sugerir que a vacina poderia transformar a pessoa em jacaré, desencorajando a população a se vacinar; ao postergar a compra de vacinas; ao ridicularizar os doentes com falta de respiração; ao ter descaso em face da situação trágica de Manaus no início deste ano, dando causa a trágica dizimação”.
Segundo eles, o presidente também deixou de cumprir com o seu dever de assumir a coordenação do combate à pandemia, sendo que, pela Constituição, uma de suas obrigações é proteger a saúde dos brasileiros.
Próximos passos
Qualquer que seja seu conteúdo final, o relatório da CPI precisa ser encaminhado para autoridades responsáveis por mais investigações e pela apresentação de denúncias ao Judiciário. São esses órgãos que podem indiciar o presidente e os demais acusados.
Entre esses órgãos, o principal é a Procuradoria-Geral da República (PGR), que tem a competência exclusiva de apresentar denúncia contra o presidente da República por crimes comuns. Caso a PGR decida acusar o presidente, a denúncia será submetida à Câmara dos Deputados — e, se for aprovada, seguirá para julgamento no STF.
No caso dos crimes de responsabilidade, o relatório da CPI deve ser enviado ao presidente da Câmara, Arthur Lira, a quem cabe decidir sobre a abertura de processo de impeachment. Depois de passar por uma comissão especial, a denúncia segue para votação no Plenário da Câmara. Em seguida, vai a julgamento no Senado.
Se a Câmara aceitar uma denúncia, seja por crime comum ou de responsabilidade, o presidente da República é suspenso por 180 dias e, no seu lugar, assume o vice-presidente.
O Tribunal Penal Internacional também deverá receber o relatório da CPI para apuração e eventual julgamento de possíveis crimes contra a humanidade. Renan Calheiros anunciou que fará uma representação formal ao órgão.
O consultor legislativo do Senado Arlindo Fernandes ressalta que também há, no relatório de Renan, indicações de atos de improbidade administrativa — que não são crimes, mas infrações civis — que teriam sido cometidos por diversos agentes públicos durante a pandemia. Caso uma autoridade seja condenada, pode ficar inelegível nos termos da Lei de Inelegibilidade e da Lei da Ficha Limpa.