O ano de 2023 marca os 25 anos do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), o maior vestibular do Brasil e o segundo maior do mundo, atrás apenas da China. A prova brasileira é a principal porta de entrada para o ensino superior 100% gratuito, em universidades federais, estaduais, por meio dp Sisu, e, em alguns casos, até privadas, pelo Prouni.
Ao longo do tempo, histórias de quem sonha em fazer uma faculdade se cruzaram, ano após ano, nas salas em que milhões de pessoas, de todas as idades, gêneros, credos, passam horas sentadas em busca do melhor resultado possível. Ali está o pontapé para uma mudança de vida, transformada pela educação.
Para ilustrar esses sonhos e transformações, a Band ouviu três jovens que nunca se viram antes, mas que têm ao menos uma coisa em comum, além da superação. O Thales Galdino, o Geovane Pereira e a Priscilla D’Mata viram no Enem uma oportunidade de crescerem acadêmica e economicamente. Todos eles, criados em pequenas cidades e sem muitas perspectivas, superaram a barreira da pobreza, da baixa escolaridade dos pais e da distância.
Do Maranhão, Pará e Piauí para o mundo
Dois desses entrevistados são doutorandos. Um deles, o Thales, faz uma etapa do doutorado em imunologia nos Estados Unidos, onde pesquisa os efeitos de uma vacina para combater o carrapato bovino, no Instituto Scripps Research, em San Diego, Califórnia.
Mas qual a história do Thales? O jovem de 29 anos nasceu em Santa Inês, interior do Maranhão, mas boa parte da vida dele se passou no Pará, na cidade de Parauapebas, onde há a maior mina aberta de minério de ferro do mundo (Complexo Mineral Carajás/Serra do Norte).
De origem pobre, o maranhense radicado no Pará sempre viu nos estudos uma porta para ganhar o mundo. Quando estava prestes a sair do ensino fundamental, sonhava em estudar na Universidade Federal do Piauí (Ufpi), no campus de Teresina. A irmã, já residente da cidade, servia de exemplo para que ele, enfim, pudesse estudar biologia na capital piauiense.
“Minha vida mudou”
Conforme relatou, em entrevista à Band, a ausência de brinquedos devido à baixa condição financeira, o motivou a focar nos livros para se sair bem no Enem. Dito e feito! A nota de 2011 permitiu a aprovação, em ampla concorrência, para cursar licenciatura em biologia, a realização do sonho de um garoto que se via como ambientalista.
É sobre a oportunidade que me foi dada e sobre você agarrar aquela oportunidade. Então, o Enem, para mim, foi o pontapé inicial. Eu me lembro, até hoje, do dia em que me sentei naquela cadeira para fazer o Enem e pensei: ‘A minha vida pode mudar hoje’. E mudou. Foi quando eu senti que cheguei ao meu sonho. Meu sonho era fazer biologia.
O mais difícil, porém, estava por vir. Como sair do interior do Pará, onde passou toda a vida, para estudar na desconhecida e maior cidade do Piauí? O dinheiro era apertado. O avô ajudou até quando pôde, antes de morrer. Os rendimentos da mãe, a costureira Francisca Galdino, serviam para o mínimo, a alimentação da família que ficou em Parauapebas.
As aulas começaram. Com o passar dos meses, Thales buscou ajuda da universidade para se manter na instituição. Conseguiu uma vaga para morar dentro do campus, na chamada Residência Universitária. O interesse pela pesquisa o colocou como bolsista do Programa de Iniciação Científica (Pibic), ocasião em que recebia R$ 400 mensais via Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
Nobel na mira de Thales
Antes mesmo de concluir a graduação, veio a notícia da aprovação no mestrado. Bolsista, focou em genética na Ufpi. As dificuldades financeiras persistiram. Naquela altura, ele não tinha mais o apoio da universidade para ter um teto. Restava calcular bem os R$ 1,5 mil da bolsa que recebia para pagar aluguel, transporte, alimentação e material de pesquisa. Ainda assim, não desistiu.
Thales defendeu a dissertação. Resultado? Aprovado. E aí mais um passo foi dado para ele crescer ainda mais, rumo à ascensão acadêmica. Em 2019, passou para o doutorado em imunologia na Universidade de São Paulo (USP), uma das mais importantes da América Latina. Agora, para o futuro doutor, resta alçar voos mais altos. Por que não pensar num Nobel?
As minhas aspirações são fazer boa pesquisa, voltar para o Brasil como um bom profissional e tentar ajudar, de alguma forma, a ciência brasileira. Talvez chegar ao primeiro Nobel brasileiro? Não sei. Eu estou na instituição que ganhou dois Nobel ano passado. Talvez esse sonho se construa, mais para frente, ou, talvez, ajudar alguém que tenha mais capacidade de ganhar um Nobel para o Brasil.
Primeiro da família
A busca pela mudança de vida também faz parte da história do Geovane, um jovem de 25 anos, o primeiro da família a ingressar em uma universidade pública. Natural de Cabrobó, cidade banhada pelo Rio São Francisco, no sertão pernambucano, a vida dele foi marcada pelo trabalho dos pais, na venda de quentinhas e em um barbearia, e do irmão mais velho, como feirante.
Ainda adolescente, Geovane corria atrás dos sonhos. Quando fazia o ensino médio, foi selecionado pelo governo de Pernambuco para participar de um intercâmbio para a Nova Zelândia. Explorar novos territórios, além das fronteiras brasileiras, fê-lo perceber que o crescimento pessoal, social e econômico que almeja só seria possível pela educação.
Em 2016, o passo mais importante foi dado, matricular-se no curso de jornalismo da Ufpi. Ao longo dos quatro anos de graduação, recebia uma bolsa de R$ 400 destinada a alunos de baixa renda mais R$ 400 pelo trabalho que desempenhava como estagiário na Coordenação de Comunicação da universidade.
Universidade diversa
Geovane é defensor de uma universidade diversa e que dê condições para o aluno continuar os estudos, o que beneficia, sobretudo, os mais pobres, negros, LGBTQIA+. É justamente essa representatividade que ele quer levar à sala de aula, já que pretende ser professor universitário.
Quando a gente fala de Enem, a gente está falando de acesso à educação. Aí vem, também, as políticas de ações afirmativas, que ganham corpo de políticas públicas de acessibilidade. Além disso, questões de bolsa. Eu sou bolsista. Sempre fui bolsista, do início da minha graduação até agora, doutorando. É graças a essa assistência que eu pude estudar e ter uma melhoria. Tudo isso começou com o embrião do Enem.
No processo de formação, Geovane agradece a atuação da mãe, Erinalda Roque da Silva, que conseguiu ajudá-lo por meio da venda de quentinhas, e do irmão mais velho, o feirante Doryédson Pereira dos Santos Júnior. O jornalista contou à Band que o pai foi ausente nesse período.
Em busca do doutorado
Em 2021, Geovane teve mais uma evolução. Ingressou no mestrado pela Ufpi, onde estudou até o início deste ano. Também foi aprovado em duas seleções de doutorado, em primeiro lugar na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e em quarto, na Universidade Federal do Ceará (UFC). Essa última será a casa acadêmica do futuro doutor pelos próximos quatro anos.
Hoje, me projeto como jornalista, como já sou, professor universitário, que já posso exercer enquanto mestre, mas eu quero ocupar, realmente, o espaço da universidade, me tornar professor universitário de uma rede pública. Eu acredito na educação. Eu aposto na educação.
Desafio na maior cidade do Brasil
Com a bagagem acadêmica um pouco menor que a do Thales e do Geovane, Priscilla D’Mata, estudante de licenciatura e bacharelado em geografia, começou a ter a vida transformada a partir do Enem. Com 20 anos, a jovem mudou-se da cidade de Santa Gertrudes (SP), com quase 28 mil habitantes, para São Paulo, onde a população é superior a 12,3 milhões.
A mudança para uma das maiores cidades do mundo ocorreu pela necessidade de estudar no campus da USP, na capital. O pequeno município onde vivia, um polo cerâmico do estado, limitava os anseios acadêmicos, culturais e profissionais de Priscilla. Foi aí que o Enem surgiu para a concretização de um sonho: matricular-se no curso de geografia.
Por ser uma cidade pequena, eu sempre encontrei, ali, uma mentalidade um pouco reduzida nessa questão de visualização do futuro. Então, o Enem, para mim, foi uma abertura de portas, uma mudança muito grande.
Educação básica defasada
O fato é que Priscilla, mesmo após fazer a prova, na segunda tentativa, viveu incertezas quanto à possibilidade de ser aprovada. A mãe, de baixa escolaridade, e o pai com certo grau de analfabetismo, não tinham como ajudá-la além dos esforços que faziam para que ela concluísse ao menos o ensino básico.
Mas o tempo mostrou que esses esforços mínimos dos pais de Priscilla foram suficientes, mesmo desacreditada de que passaria para uma universidade pública. Afinal de contas, relatou à Band, o ensino fundamental e o médio, mais o contexto de pandemia, fizeram com que a preparação para o Enem ficasse defasada.
Eu, realmente, não estava esperando, de jeito nenhum, que eu entraria [na universidade], muito pelas questões da educação que encontrei na escola pública. Tive muita defasagem e não tive condições financeiras para ir atrás de um cursinho para me dedicar 100%.
Melhorar a vida da família
Na universidade, Priscilla recebe R$ 800 para se manter no curso, dada a baixa condição econômica da família. Com o dinheiro, ela paga o aluguel. Além disso, é contemplada com um auxílio de R$ 150 para comer no restaurante universitário. Para melhorar a situação financeira, a entrevistada está em busca de um estágio remunerado para complementar a renda.
As aspirações de Priscilla são várias, mas o que faz os olhos dela brilharem é a possibilidade de retornar à sociedade, principalmente dentro de uma sala de aula, tudo o que aprende na graduação. Outro objetivo da estudante é fazer com que os pais, Ana Maria Oliveira e Manoel Luiz de Oliveira, melhorem de vida, especialmente no aspecto financeiro.
Eu quero, primeiramente, conseguir fazer com que a minha família tenha um retorno do meu estudo, que eu consiga, de alguma forma, mantê-la estável, financeiramente, e voltar tudo o que estou aprendendo, dentro da universidade, para o povo brasileiro. Eu quero entrar numa instituição, atuando como professora.
Análise do ensino superior
Apesar dos pontos positivos exaltados por Thales, Geovane e Priscilla, os quais tiveram oportunidade de fazerem a prova e terem uma boa pontuação, há quem questione a efetividade do Enem na democratização do acesso ao ensino superior. A pesquisadora em relações raciais Mabel Freitas, pós-doutora em educação pela USP, pondera sobre o exame.
Democratizar o acesso à universidade é criar um número de vagas em instituições públicas que inclua todas, todes e todos que desejam cursar o nível superior. Se, para iniciar a carreira acadêmica, as pessoas necessitam fazer um Exame, trata-se de um processo seletivo e classificatório com dinâmica excludente.
Pela primeira vez, em 2018, negros representavam a maioria dos matriculados no ensino superior público, indica o estudo “Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil”, publicado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2019. A espera foi demorada, apesar de o país ser formado majoritariamente pela população preta e parda, grupo ainda carente de serviços básicos, inclusive da educação, um direito de todos perante a Constituição.
De acordo com o IBGE, a proporção de negros nas universidades públicas chegou a 50,3% em 2018. Nesse contexto, a especialista ouvida pela Band argumenta que, para além do Enem e das políticas de ações afirmativas, o aumento desse grupo minoritário, do ponto de vista social, é resultado do protagonismo dos coletivos raciais.
Reitero que a presença preta na universidade é resultado da nossa secular militância. Somos protagonistas dessa conquista que refuta as teses da inferioridade intelectual e anomia social [dos negros].
Abandono escolar
Apesar dos dados positivos sobre negros nas universidades públicas, a base educacional brasileira ainda penaliza os pretos e pardos. O mesmo IBGE, de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad Educação 2022), indica que 70,9% dos jovens negros, de 14 a 29 anos, deixaram a escola motivados, principalmente, pela busca de trabalho. Isso mostra que a chance de ingressarem no ensino superior se distancia ainda mais.
Breve histórico
O Enem nasceu em 1998 com o objetivo de medir a proficiência dos alunos com o conteúdo do ensino médio. Na época, apenas 157 mil estudantes fizeram a prova. A partir de 2009, o exame foi adotado pelas universidades públicas como forma de ingresso nos cursos de graduação.
A partir daí, o Enem viveu um momento de prestígio. Em anos anteriores, a prova batia recordes. Em 2014, 8,7 milhões de candidatos se inscreveram, número bem superior aos 3,4 milhões de 2022. Ainda assim, o exame triunfa como o segundo maior do mundo, atrás apenas do vestibular, também nacionalizado, da China, o Gaokao, que teve 11,9 milhões de registros no ano passado.
- Reportagem: Édrian Santos
- Editor-chefe: Paulo Guilherme Guri
- Captação e edição: Cleison Luis