"Encontro com Brasil é ajuste estratégico para Alemanha"

Presença de comitiva brasileira tem impacto multifacetado, que inclui ações contra mudanças climáticas, demonstração de poder na liderança do G20 e acordo Mercosul-UE, destaca Oliver Stuenkel, professor da FGV.

Por Deutsche Welle

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva chega à Alemanha neste domingo (03/12) para acelerar as relações bilaterais entre os países. Na agenda, estão previstos encontros com o presidente alemão, Frank-Walter Steinmeier, e o chanceler federal alemão, Olaf Scholz. A expectativa é de celebrar acordos comerciais e estreitar as estratégias contra as mudanças climáticas em um momento positivo para o Brasil. A taxa de desmatamento na Amazônia caiu 22,3% de agosto de 2022 a julho de 2023, em comparação com o mesmo período do ano anterior, segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).

"Tanto na Alemanha quanto no Brasil, o combate às mudanças climáticas e a transformação da economia global em função dessas mudanças e da necessidade de promover sustentabilidade são temas-chave. O primeiro ano do governo Lula foi marcado por um alívio internacional, porque há um movimento que prioriza novamente o combate ao desmatamento, e os primeiros números são muito bons", disse à DW Oliver Stuenkel, professor na Escola de Relações Internacionais da Fundação Getulio Vargas (FGV) em São Paulo.

O analista afirma que a aproximação com o Brasil impacta um momento delicado na política interna da Alemanha e pode reverberar também no acordo entre o Mercosul e a União Europeia. Em setembro, o presidente do Paraguai, Santiago Peña, ameaçou abandonar as negociações para a ratificação - que se arrastam desde 2019 - caso o acordo não seja firmado até 6 de dezembro, quando o país assume a liderança do Mercosul após a gestão brasileira. "Pedi ao presidente Lula que feche a negociação, porque se não fechar não vou continuar no próximo semestre", revelou Peña na ocasião.

"São negociações que acontecem há mais de 20 anos e acho que estamos em um momento decisivo. Teremos eleições do Parlamento Europeu no ano que vem e o cenário mais provável é que haja mais deputados protecionistas. E tem o fator Javier Milei como presidente da Argentina, que indica ser um negacionista climático, o que pode ser o pretexto ideal para protecionistas europeus dizerem ‘não vamos nos associar a ele'. Milei assume em 10 de dezembro e pode ser que tenhamos alguma novidade antes disso. É um momento de incertezas. A relação entre Alemanha e Brasil seguirá mesmo sem o acordo, mas é claro que esse acerto poderia levar a parceria a outro nível", explicou Stuenkel.

DW: Na lista de cerca de 20 declarações e acordos que serão feitos entre os dois países, há pelo menos nove sobre meio ambiente, mudanças climáticas e justiça social. O que isso diz sobre a intenção dos dois países nessa área?

Oliver Stuenkel: Tanto na Alemanha quanto no Brasil, o combate às mudanças climáticas e a transformação da economia global em função dessas mudanças e da necessidade de promover sustentabilidade são temas-chave, que envolvem, além da economia, a segurança nacional.

Na Alemanha, a pauta ocupa um espaço considerável na política nacional, e no Brasil é a maneira pela qual o país se projeta internacionalmente. O Lula chega em Berlim já como presidente do G20 [a presidência brasileira começou em 1º de dezembro]. Em função disso, acredito que essa visita, do ponto de vista alemão, seja ainda mais importante porque é uma das primeiras que o presidente brasileiro faz no contexto de pautar agenda ao longo do próximo ano não só como o país que preside o bloco, mas que também vai organizar a cúpula do BRICS de 2025 e a COP30.

O primeiro ano do governo Lula foi marcado por um alívio internacional, porque há um movimento que prioriza novamente o combate ao desmatamento, e os primeiros números são muito bons. A Embaixadora da Alemanha no Brasil [Bettina Cadenbach] disse em entrevista ao Valor Econômico que são resultados fantásticos. É uma notícia muito boa para relação bilateral. Ainda que tenha havido alguma fricção por divergências sobre a guerra na Ucrânia e isso tenha diminuído o espaço para falar de outras questões em que os dois países podem trabalhar juntos, há a esperança de que o encontro possa viabilizar cooperação em outros aspectos comerciais.

A Alemanha passa por um momento delicado em termos de política externa, com posicionamento sobre a guerra entre Israel e Hamas, e também interna, com buraco de 60 bilhões de euros no orçamento federal devido a comprometimento de empréstimos originalmente destinados ao combate à covid-19 e realocados para um fundo do clima. A visita de Lula pode ser interpretada como mais importante para a Alemanha do que para o Brasil nesse momento?

É uma transformação histórica. O contexto geopolítico da Alemanha dos últimos anos, com uma parceria de segurança inabalável com os EUA e o acesso à energia russa barata, não se repete. A Alemanha paga mais caro pela energia da Rússia e a relação transatlântica está incerta com o possível retorno de Donald Trump e questionamento ao compromisso norte-americano à Otan. Isso obriga a Alemanha a aumentar seus gastos militares, que são de baixo retorno social. Ou seja: pagar mais pela energia, se preocupar com a incerteza geopolítica, investir mais na Defesa, uma economia global mais protecionista, crise climática e migratória, com pressão interna para o país... É um cenário complicado.

No meio disso, há uma questão interna, com uma coalizão instável de três partidos que possuem visões diferentes. Diante disso, fica evidente a necessidade da Alemanha de fortalecer os laços com potências do sul global, como Brasil, Índia e Indonésia, que se tornarão pilares da economia mundial. Esse encontro faz parte de um ajuste estratégico alemão.

Sobre o G20, o que esse encontro representa para o Brasil na liderança do grupo?

Essa visita permite que o Brasil possa desenvolver e articular uma narrativa sobre os principais temas que o país pretende priorizar ao longo dessa presidência. É importante lembrar que o G20 é mais do que apenas uma reunião. A reunião da cúpula que vai acontecer em novembro do ano que vem, no Rio de Janeiro, é o ponto final de um processo maior.

A Índia [antecessora do Brasil na presidência], por exemplo, teve numerosos encontros e conseguiu visibilidade para atrair investimentos e contar uma história para um público global. E essa viagem do Lula à Alemanha é o primeiro capítulo dessa narrativa que o Brasil está construindo.

Nessa entrevista ao Valor Econômico, a embaixadora da Alemanha no Brasil citou a questão climática como assunto de segurança nacional, algo que o você também ressaltou. Como as duas coisas estão conectadas?

A questão climática tradicionalmente foi vista como um desafio entre vários outros, que incluem problemas geopolíticos e migração, por exemplo. E o clima impacta todas essas questões. O conflito na Síria teve um grande impacto sobre a Alemanha, com a chegada de mais de um milhão de imigrantes, e essa guerra é o resultado de um evento climático, que foi a seca entre 2006 e 2010 na Síria que fez com que muitos jovens saíssem do campo e migrassem para as cidades. E as grandes cidades da Síria não conseguiram absorver essas pessoas. Isso gerou instabilidade política e contribuiu de forma decisiva para a guerra civil que acontece até hoje.

Crises climáticas acirram deslocamentos, e a Alemanha é um dos principais países de destino de pessoas que fogem dos seus lares em busca de novas oportunidades econômicas. No meio disso tudo, a Alemanha precisa garantir certa estabilidade econômica tentando descarbonizar sua economia e encontrar alternativas para a dependência ao petróleo da Rússia.

Frequentemente participo de debates na Conferência de Segurança de Munique, que acontece uma vez por ano e na qual o foco é geopolítica e segurança. Mas há anos o tema principal tem sido as mudanças climáticas. Em 2020, estive em uma reunião com generais da Otan, e o meio ambiente e as mudanças climáticas foram temas relacionados à estabilidade global e à segurança nacional dos países"

Na Alemanha essa pauta deixou de estar restrita a um partido e tornou-se uma agenda que é consenso. Claro que existem os negacionistas, mas, de maneira geral, a pauta climática é um assunto prioritário em vários aspectos. E o Brasil é um país-chave nessa questão.

Entre os pontos de destaque nessa agenda há o potencial de produção de hidrogênio verde. Como o Brasil pode usar isso a seu favor nas negociações de acordos?

O Brasil terá uma importância muito grande nas cadeias de valor nessa economia global mais sustentável, e isso inclui o hidrogênio verde. O país, ainda que seja um produtor de energia fóssil, assim como outras nações da América Latina, está bem posicionado nessa transição enérgica.

O fundamental para o Brasil é aproveitar esse próximo boom de commodities que está se aproximando para participar mais ativamente de processos sofisticados e não ficar apenas como exportador de commodities. Ou seja: estar envolvido na economia verde de maior valor agregado.

Esse desejo fica claro nessa aproximação com a Alemanha e também no contexto das negociações entre União Europeia e Mercosul, para que não seja um acordo apenas para exportar commodities e importar produtos de alto valor agregado. Essa posição de destaque do Brasil deve ser utilizada ao não se limitar à exportação, mas conseguir obter investimentos que contribuam para a sofisticação da economia e do aprimoramento em tecnologia.

A agenda de Lula na Alemanha pode beneficiar o acordo de livre comércio entre Mercosul e União Europeia?

A dinâmica que decide se vai ou não vai ratificar esse acordo é uma briga entre Alemanha e a Espanha de um lado, e França e a Polônia do outro, dois países que tem um setor agrícola politicamente muito influente, se opõe a ratificação e atua de maneira protecionista.

Há alguns elementos protecionistas entre grupos ambientalistas da Europa, que argumentam que o acordo pode piorar o desmatamento. Mas as regras e normas que a União Europeia utiliza dizem justamente o contrário, porque ele [o acordo] fará com que o Brasil adote uma série de regras e normas muito mais exigentes. E tem outra coisa: o Brasil não vai deixar de exportar commodities caso não haja a assinatura. O que acontece é que países como a China estão menos comprometidos com a adoção de normas ambientais.

Esse acordo será uma excelente notícia para o meio ambiente e para integrar a economia brasileira, suas cadeias de valor, pelo mundo. É positivo porque conecta as duas regiões geopoliticamente, que em muitos quesitos têm visões semelhantes e que se preocupam com o aumento das tensões entre a China e os EUA. Agora, são negociações que acontecem há mais de 20 anos e acho que estamos em um momento decisivo.

Teremos eleições do Parlamento Europeu no ano que vem e o cenário mais provável é que haja mais deputados protecionistas. E tem o fator Javier Milei como presidente da Argentina, que indica ser um negacionista climático, o que pode ser o pretexto ideal para protecionistas europeus dizerem "não vamos nos associar a ele". Milei assume 10 de dezembro e pode ser que tenhamos alguma novidade antes disso. É um momento de incertezas. A relação entre Alemanha e Brasil seguirá mesmo sem o acordo, mas é claro que esse acerto poderia levar a parceria a outro nível.

Autor: Guilherme Henrique

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