É preciso "varrer com ainda mais determinação a 'cultura cortesã' para fora da Cúria e outros locais". Pois "a Igreja não é uma corte, não é um lugar para cliques, nepotismo [...] Ela não é, de modo algum, a última corte europeia de uma monarquia absoluta."
Palavras que soam como a declaração de guerra de um jovem revolucionário católico. No entanto, seu autor conta 88 anos de idade e é o líder da Igreja Católica. Há quase 12 anos no posto, o papa Francisco publica sua autobiografia. É uma narrativa plena de lembranças e visões, de tristeza quase terna e de conexão íntima com tudo o que é humano, de ira juvenil e de grande esperança.
É a primeira vez que um sumo pontífice apresenta em vida escritos tão pessoais. O livro de 385 páginas será lançado nesta terça-feira (14/01), em cerca de 80 idiomas, em cem países.
Na verdade, o desejo de Francisco era "que sua autobiografia fosse lançada como legado, após sua morte", explica no posfácio o coautor Carlo Musso, que colaborou na obra desde 2019. No entanto, o ano do jubileu 2025 e "as exigências de nossa época" o convenceram a não esperar.
Palavras de ordem de significado profundo
O lema do ano santo 2025 é "Peregrinos da esperança". Assim, o título Esperança funciona também como uma espécie de roteiro para a leitura dessa autobiografia. Musso resume: "Adiante! Um homem nascido em 1936, que só olha para trás a fim de dirigir o olhar ainda mais para frente."
Como seria de esperar, Francisco aborda temas explosivos da atualidade e cita suas já conhecidas palavras de ordem: por que "a economia mata"; que há muito a humanidade se encontra "pouco a pouco" na Terceira Guerra Mundial; que para muitos "migração" continua sendo "invasão"; ou como "estamos jogando pingue-pongue com seres humanos".
Para ele, a Europa é simplesmente "o velho continente". E o acampamento para refugiados Moria, na ilha de Lesbos, no Mar Mediterrâneo, que visitou duas vezes, encarna "a vergonha da União Europeia". O papa fala da agressão russa contra a Ucrânia, do terrorismo do Hamas ("barbárie", "carnificina") e da guerra na Faixa de Gaza. "Terrorismo" é também como define certas operações militares de Israel.
E, é claro, ele trata do estado de sua Igreja. Sobre o abuso sexual, escreve que "a dor das vítimas é um lamento que se ergue até os céus". Condena o tradicionalismo que transforma a liturgia "numa questão de ideologia"; a "crassa exibição de clericalismo", "desfiles de fantasias, distúrbios afetivos". Ele menciona o debate ferrenho sobre a ordenação de diaconisas, que vem sendo travado há anos, como "uma questão em aberto, que ainda exige um esclarecimento fundamental".
Ponte entre história pessoal e drama global
Mas, apesar de todas essas palavras-chaves e pontos de conflito, no fundo o livro é uma grande narrativa sobre indivíduos e sobre o humano, sobre os modelos que geraram essa esperança.
O ponto de partida da história está no início do século 20, com as raízes da família de Jorge Mario Bergoglio na região norte-italiana de Piemonte e a aventurosa emigração para a Argentina. Os avós perdem o navio em que deveriam viajar com o filho – futuro pai do papa – de Gênova para a América do Sul, e a embarcação afunda diante da costa, causando a morte de centenas.
A partir desse drama familiar, o líder religioso nascido em 17 de dezembro de 1936 faz a ponte para sua primeira visita ao campo de refugiados na ilha italiana de Lampedusa e os incontáveis mortos no mar. Ele denuncia a "globalização da indiferença", o atual isolamento da Europa. "Não pode e não deve ficar estabelecido na cabeça e no coração da humanidade que seja certo ver homens, mulheres e crianças se afogarem no Mediterrâneo, vez após vez."
A fórmula de tecer história familiar, pessoal, com os dramas globais se repete. Das lembranças de guerra do avô, a narrativa salta para os conflitos atuais e o comércio de armas, as quais "vêm de toda parte": "Daqueles países que mais tarde rechaçam os refugiados, os mesmo que foram, justamente, criados pelas armas desses conflitos."
O pontífice detalha as impressões marcantes da infância e juventude, assim como dos tempos de doença grave. Dos primeiros amores ("... também eu me senti atraído por duas jovens damas"), chega à situação estranhamente misteriosa que, numa manhã de 1953, em Buenos Aires, atraiu o jovem de 26 anos para dentro de uma igreja católica ("E súbito eu soube que me tornaria padre").
Segue-se a guerra civil e a ditadura militar argentina, tempos de dor e perda. Na linguagem eclesiástica, o que o autor conta é "teologia do povo". Nesse sentido, um trecho central do livro, que também recebe destaque gráfico, é sua "confissão de fé pessoal": um texto como um testamento bíblico.
Conectado à grande dor do mundo
Os heróis e heroínas de sua grande narrativa são gente comum. Ele fala simplesmente como pastor, ser humano, abalado pela dor, dá a palavra a uma menina do Congo e as companheiras de sofrimento dela, que conheceu durante sua viagem pela África em 2023.
"Uma coleção de cenários de horror, assassinatos, estupros, destruição" um "abismo de dor", enumera. E conta também o encontro com uma sobrevivente de campo de concentração, ao visitar Auschwitz em 2015. Em detalhe, narra suas conversas com a jovem yazidi Nadia Murad, Prêmio Nobel da Paz em 2018, cujo calvário de abduções e estupros o comove.
Esse destino – típico de tantas mulheres dessa minoria étnico-religiosa curda – contribui para a decisão do papa Francisco de visitar o Iraque: "Conheci tantos testemunhos de fé corajosos durante essa viagem. Conheci tantos 'santos da casa ao lado' [...]. Até o fim da vida, o Iraque vai me acompanhar sempre."
Autor: Christoph Strack