Dois anos depois, América Latina segue neutra sobre Ucrânia

Maioria dos países do continente prefere não tomar posição. Já no âmbito econômico, nações se adaptaram ao cenário global e até conseguem lucrar com conflito, como no caso do Brasil.

Por Deutsche Welle

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No segundo ano da invasão da Ucrânia pela Rússia, a maioria dos países da América Latina continua sem assumir posição quanto ao conflito. Por sua vez, a vitória do presidente Javier Milei na Argentina representou uma mudança na neutralidade do país. O novo governo deu fortes demonstrações de apoio à Ucrânia e busca ampliar o suporte, mas analistas veem espaço limitado, especialmente sem perspectivas de ter o Brasil na aliança. Enquanto isso, o forte choque que o conflito gerou no mercado de commodities ainda repercute, mas impulsionou adaptações e novas oportunidades na região.

Em dezembro de 2023, o presidente ucraniano, Volodimir Zelenski, fez sua primeira viagem à América Latina desde o começo da guerra. Na ocasião, o líder esteve presente na posse de Milei, que fez uma série de declarações em apoio à Ucrânia, e anunciou que planeja uma cúpula regional para angariar apoio à Kiev.

A possibilidade já havia sido ventilada em um encontro entre o ucraniano e o presidente do Chile, Gabriel Boric, na Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) em setembro. O chileno se notabilizou como um dos grandes defensores da Ucrânia na região. Por sua vez, a esperada ausência do Brasil é vista como um sinal de que os planos podem ter eficácia limitada.

"É improvável que Lula participe ou coopere com tal plano, não só por causa das tensões com a Argentina, mas porque é pouco provável que coloque em risco o bom relacionamento do Brasil com a Rússia”, avaliam os pesquisadores da consultoria Eurasia Group Luciano Sigalov e Julia Thomson. Com a falta de apoio do Brasil, além das prováveis ??dificuldades em alinhar os governos latino-americanos com opiniões divergentes sobre o assunto, é pouco provável que a cúpula alcance resultados importantes, projetam os analistas.

Na visão deles, a eleição de Milei não mudará a posição da América Latina no conflito, já que a Argentina não é um ator geopolítico relevante. "A principal preocupação de Milei é estabilizar uma economia em dificuldades, e ele irá concentrar-se mais nisso do que nas relações externas”, avaliam.

Laços entre Brasil e Rússia

"Para um grande ator como o Brasil, a importância da sua relação com a Rússia está ligada à sua dependência das importações de petróleo e fertilizantes, que são vitais para o seu setor do agronegócio – 28% dos fertilizantes do Brasil são provenientes da Rússia”, apontam os pesquisadores.

Em dezembro, a afirmação de Lula de que Vladimir Putin seria convidado para a cúpula do G20, que será realizada em novembro no Rio de Janeiro, gerou polêmica e críticas. Putin é alvo de um mandado de prisão expedido em março de 2022 pelo Tribunal Penal Internacional (TPI). Como o Brasil é signatário da Corte, o presidente russo poderia ser detido ao desembarcar em território brasileiro. Nos últimos meses, Putin chegou a evitar compromissos internacionais devido aos riscos envolvidos.

Ainda no âmbito do G20, Lula se reuniu nesta semana com o ministro das Relações Exteriores da Rússia, Sergei Lavrov, que esteve no Brasil em razão do encontro de chanceleres do bloco. O ministro reforçou convite para que o brasileiro vá à Rússia em outubro, em razão da cúpula do Brics, o que foi aceito pelo presidente. Na ocasião, Lula voltou a demonstrar disposição para auxiliar em uma solução pacífica para o conflito.

Dias antes, em uma conferência de imprensa na Etiópia, Lula questionou as acusações contra o governo russo por conta da morte do opositor Alexei Navalny. O presidente pediu para que não houvesse conclusões precipitadas. "Eu acho que é uma questão de bom senso. Se a morte está sob suspeita, nós temos que primeiro fazer uma investigação para saber do que o cidadão morreu”, declarou.

Ainda na América do Sul, Lavrov visitou a Venezuela, onde reforçou os laços com o governo de Nicolás Maduro, seu principal parceiro regional.

A Rússia enfrentou alguns revezes, como um acordo militar entre Equador e Estados Unidos, que desagradou Moscou. Como retaliação, as importações de banana do país sul-americano foram suspensas no começo fevereiro, algo que foi revertido dias depois. Segundo os pesquisadores da Eurasia, os laços comerciais entre a Rússia e a América Latina são muito menos profundos em comparação com a relação entre a região e a China, por exemplo, o que faz com que a pressão econômica seja limitada.

Reconfiguração de mercados

A guerra teve um forte impacto inicial nos mercados de commodities, o que levou à disparada da inflação na região. No entanto, passado o choque, os países se readaptaram ao cenário global, e, em alguns casos, até obtiveram vantagens com o novo quadro. O Brasil, por exemplo, passou a importar uma parte significativa dos combustíveis que a União Europeia deixou de adquirir da Rússia, e se tornou o principal comprador de diesel russo.

Além disso, a busca por alternativas energéticas impulsionou explorações na região, como no caso de Vaca Muerta, na Argentina, zona produtora de gás natural, que passou a ser cobiçada por países europeus devido às restrições às importações russas. Além das fontes tradicionais, energias alternativas, com destaque para o hidrogênio verde, também passaram a ser buscadas por uma série de países, como a Alemanha, visando a transição energética.

Em dezembro, Lula e o chanceler federal da Alemanha, Olaf Scholz, assinaram um acordo de cooperação para desenvolver energias renováveis e hidrogênio verde, quando o brasileiro cumpria agenda em Berlim.

No campo dos alimentos, que sofreram fortemente a alta dos preços com a guerra, houve alguma normalização no mercado, e a inflação chegou a registrar recuos. No caso do índice mensal da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), janeiro de 2024 registrou uma queda de 1,0% com relação ao mês anterior. Já na comparação anual, a queda foi de 10,4%. O índice teve seus recordes em 2022, seguindo justamente a invasão da Ucrânia.

Autor: Matheus Gouvea de Andrade

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