Covid-19: a pandemia que acabou, mas ainda divide a Alemanha

Partidos populistas pressionam por comitê investigativo, fábricas de máscaras processam governo alemão. Enquanto isso, movimentos negacionistas e teóricos de conspiração seguem sob observação do serviço de inteligência.

Por Deutsche Welle

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A Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou em 11 de março de 2020 e existência de uma onda global de infecções pelo coronavírus, assim como o seu fim, em 5 de maio de 2023. Por um lado, a pandemia de covid-19 terminou. Por outro, segue dividindo a sociedade alemã, com muitos se perguntando quão perigoso mesmo era o vírus, e se as medidas impostas pelos governos federal e estaduais foram corretas e adequadas.

Uso obrigatório de máscaras, toques de recolher, fechamento de escolas, proibição de manifestações, vacinação obrigatória para profissionais da saúde: por vezes foram controversas as medidas para impedir a disseminação e mitigar o impacto do vírus, introduzidas pelo governo – primeiramente, sob o comando da então chanceler federal Angela Merkel, da conservadora de centro-direita União Democrata Cristã (CDU), e depois sob a atual coalizão de centro-esquerda, liderada pelo social-democrata Olaf Scholz (SPD).

O virologista alemão Christian Drosten tornou-se figura conhecida do público devido a suas constantes aparições e entrevistas concedidas para falar sobre o vírus e as medidas de proteção. Recentemente, fez um alerta: a história estaria sendo reescrita por atores desonestos que querem manchar sua imagem.

"A disputa sobre questões fundamentais não existia na ciência da forma como era apresentada em alguns programas de entrevistas. Isso era entretenimento informativo. A pandemia é história e não devemos distorcê-la", argumentou, em entrevista ao jornal alemão Augsburger Allgemeine.

Embora tenham admitido que foram cometidos erros e que agora fariam certas coisas de maneira diferente, alguns dos responsáveis pela elaboração de políticas na época também relembram a escala sem precedentes da crise, que levou o serviço de saúde ao limite: a Alemanha registrou 174.979 mortes e 38.437.756 casos até 19 de dezembro de 2023, depois do primeiro teste positivo, em 27 de janeiro de 2020.

Populistas x governo

Tanto a populista de esquerda Aliança Sahra Wagenknecht (BSW), fundada por uma política que se opôs às medidas impostas pelo Estado , quanto a ultradireitista Alternativa para a Alemanha (AfD), pressionam pela instauração de uma comissão de inquérito para examinar a formulação das políticas durante a pandemia.

Na moção, a BSW acusa o governo de exercer influência indevida sobre o Instituto Robert Koch (RKI), a agência federal de controle de doenças da Alemanha, e de "supressão de posições divergentes no discurso público".

Por enquanto, não haverá uma revisão oficial da política da pandemia, porque a coalizão governamental – completadas pelo Partido Verde e o Liberal Democrático (FDP) – não chegou a um consenso sobre como a forma que esse processo tomaria. O SPD afirma que uma revisão só faria sentido em concordância com os estados, enquanto encarregados de implementar as medidas. Já os neoliberais do FDP querem a criação de um comitê de investigação no Bundestag (câmara baixa do Parlamento alemão).

Auditorias e processos em andamento

O Tribunal Federal de Contas (BRH) e outros tribunais alemães estão bastante ocupados analisando os números e julgando uma série de processos judiciais relacionados à pandemia de covid-19.

O Ministério da Saúde, por exemplo, enfrenta uma longa batalha jurídica com os fornecedores de máscaras FFP2, que processaram o governo por bilhões de euros em faturas não pagas. O então ministro da pasta, Jens Spahn, impôs um prazo para a entrega das máscaras que o Tribunal Regional de Colônia considerou inválido. O caso agora está na Supremo Tribunal.

Também foram levantadas questões sobre o mandato de Spahn como ministro da Saúde depois que o BRH criticou o ministério pelas "compras excessivas e maciças" de máscaras, a metade das quais foi destruída por terem desnecessárias.

Lauterbach x movimentos negacionistas

O sucessor de Spahn, o médico social-democrata Karl Lauterbach, defendeu medidas rigorosas para combater a propagação da pandemia antes e depois de assumir o cargo. Isso o tornou figura odiada pelos integrantes do movimento Querdenker, composto por antivacinas e críticos das restrições.

A cena dos Querdenker segue sob observação do Departamento Federal de Proteção da Constituição (BfV), o serviço de inteligência doméstica da Alemanha, por sua "deslegitimação do Estado em grau relevante para a proteção da Constituição".

Em abril de 2022, membros suspeitos do grupo terrorista Patriotas Unidos, ligado à cena Querdenker e ao movimento extremista de direita Reichsbürger, foram presos por planejar sequestrar Lauterbach derrubar o governo. Até hoje, o ministro da Saúde permanece sob proteção 24 horas por dia.

O sociólogo alemão Matthias Quent descreveu o Querdenken 711, de Stuttgart, um dos primeiros fundados na Alemanha, como um excelente exemplo de radicalização da cena, uma vez que os membros se apresentam estrategicamente como "combatentes da resistência contra uma suposta injustiça ditatorial".

Figuras proeminentes da cena também foram acusadas de corrupção e de lucrar com a pandemia. Michael Ballweg, fundador e líder do Querdenken 711, teria arrecadado mais de 1,2 milhão de euros através de apelos públicos por doações, dos quais empregou mais de 575 mil euros para fins particulares.

Outra figura de destaque do movimento, o advogado Reiner Fuellmich, também é acusado de desviar 700 mil euros do "Comitê Corona", de que é cofundador, uma autodenominada "comissão de especialistas" que divulgava alegações falsas sobre a doença e as vacinas.

Fuellmich, que já foi o principal candidato do partido Die Basis – outro contestador da pandemia e suas medidas protetivas –, enfrenta acusações de desvio de verbas e fraude. Ele foi condenado por calúnia e incitação ao ódio depois de descrever os cientistas do RKI como "assassinos em massa".

Polêmica alimentada por arquivos

Em parte, a controvérsia sobre a forma como o governo lidou com a pandemia foi alimentada pela recusa inicial do RKI de publicar as atas das reuniões realizadas por seu comitê de crise durante a pandemia.

Em abril de 2023, pela primeira vez, o RKI divulgou arquivos de janeiro de 2020 a abril de 2021, em resposta a um requerimento nos termos da Lei de Liberdade de Informação. Inicialmente, eram versões severamente editadas – segundo o instituto, com o fim de proteger os direitos de terceiros, propriedade intelectual, segurança pública e relações internacionais – o que alimentou ainda mais as teorias de conspiração.

Em maio de 2024, o instituto publicou mais arquivos, a maioria sem cortes. Dois meses depois, uma leva de arquivos não editados foi publicada online, supostamente vazada por um funcionário do RKI. Isso acirrou ainda mais a controvérsia sobre as avaliações de risco, a eficácia do uso de máscaras e vacinas e o impacto dos confinamentos. O RKI não comentou sobre a autenticidade desses arquivos, alegando que continua planejando publicar os arquivos restantes "na medida do possível, sem edições".

Possíveis dificuldades à vista

A estrutura normativa para as últimas medidas restritivas contra a pandemia expirou na Alemanha em 7 de abril de 2023, não muito antes de a OMS declarar que a covid-19 não era mais uma emergência de saúde pública.

Novas variantes do vírus, no entanto, continuam a circular, pacientes de "covid longa" ainda convivem com suas consequências. Estima-se elas totalizem pelo menos 65 milhões em todo o mundo.

Em entrevista à revista Der Spiegel, em março de 2024, Lauterbach afirmou que o país está muito mais bem preparado para uma eventual próxima pandemia, pelo menos em termos técnicos. Como sociedade, em contrapartida, ele acredita que a Alemanha esteja muito menos preparada, devido a um "subgrupo maciçamente mobilizado" que coincide em grande parte com os eleitores da AfD, rejeita as medidas de controle e é contra as vacinas: Este "dificultaria o combate a qualquer pandemia futura, do ponto de vista político", advertiu o ministro da Saúde.

Autor: Helen Whittle

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