Era 6 de dezembro de 2003 quando Jonnathan Silva Vieira, de 15 anos, desapareceu. O rapaz morava em um bairro da periferia de São José de Ribamar, cidade da Grande São Luís, região oriunda da invasão de terras.
Até os dias atuais, a ausência de serviços públicos básicos e a pobreza maculam crianças e adolescentes que residem naquela área, onde o destino de outros garotos cruzou com o do mecânico Francisco das Chagas, posteriormente conhecido como o serial killer dos meninos emasculados.
Esta reportagem contou com a colaboração do jornalista Thiago Martins, da Band Maranhão. O jornalismo da Band, com o auxílio da ferramenta Pinpoint, do Google, analisou documentos processuais sobre o conhecido “caso dos meninos emasculados”. Inquirições, depoimentos, laudos, entre outros, fazem parte do acervo coletado.
Acesse os documentos no Google Pinpoint
O novelo começou a se desenrolar a partir do desaparecimento de Jonnathan. Antes de sair de casa, comunicou a irmã que encontraria o Chagas, nome pelo qual atendia na vizinhança, que o tinha como uma pessoa prestativa e de confiança, distante de qualquer suspeita. Segundo o adolescente, os dois coletariam “juçara”, fruto amazônico conhecido no resto do Brasil como açaí.
O tempo passava, mas o rapaz não retornava da extração do fruto. A mãe, já desesperada, procurou a polícia, ocasião em que citou Chagas como a última pessoa que teria encontrado o adolescente. Entre os dias 7 e 8 daquele mês, foi convocado para prestar esclarecimentos.
A Band teve acesso a um dos primeiros interrogatórios daquele que, mais tarde, seria responsabilizado pelo assassinato de 42 meninos, inclusive o de Jonnathan.
Os crimes ocorreram em Altamira, no Pará, e em cidades da Região Metropolitana de São Luís, no Maranhão. O perfil das vítimas: crianças e adolescentes marcados pela pobreza. A polícia comprovou que muitos foram emasculados, ou seja, tiveram a genitália arrancada.
Pistas deixadas por cartazes
No interrogatório, Chagas negou conhecer o Jonnathan e disse que só o viu algumas vezes na região onde mora. Na sequência foi liberado. As diligências continuaram no bairro, até que um “vestígio subjetivo” foi deixado pelo então possível assassino, segundo explicou o delegado Sebastião Uchôa, época em que chefiava as delegacias da Grande São Luís como superintendente da Polícia Civil.
A análise de Uchôa foi dada em entrevista (assista no vídeo abaixo) à Band, ocasião em que narrou como cartazes de meninos desaparecidos fizeram-no levantar uma das primeiras suspeitas sobre Chagas.
Isso porque o mecânico, a fim de despistar a vizinhança e até mesmo a polícia, confeccionava os impressos que auxiliariam na busca pelo adolescente Jonnathan e, também, por uma criança de quatro anos, o menino Daniel Ferreira Ribeiro, a penúltima vítima, morta em fevereiro de 2003.
Vale ressaltar que Daniel era sobrinho da ex-esposa de Chagas. O pai da criança chegou a ser suspeito do desaparecimento, pois o menino dormia na casa dele, quando sumiu, já que os pais eram separados. Inclusive, durante a investigação, o próprio mecânico participou da reconstituição do possível assassinato ao interpretar o progenitor da vítima.
“Quando eu chego à casa do Jonnathan [última vítima], encontro, logo no poste, um cartaz fixado. De imediato, eu fiz uma analogia com o cartaz do Daniel, a penúltima vítima que acompanhei a investigação, a distância, do delegado Nilvan. Aí eu falei: ‘Quem deu sumiço nesse rapaz [Jonnathan] deu sumiço no Danielzinho’. Esses cartazes foram os vestígios subjetivos, que eu chamo, deixados por ele [Chagas]. Ele jamais chegaria à conclusão de que alguém faria essa correlação”, relembrou Uchôa.
Denúncia contra o Brasil
Naquele contexto, as autoridades lidavam com outros desaparecimentos e corpos de meninos encontrados na Grande São Luís, em regiões de mata. Tal situação indignava a opinião pública quanto à resolução desses crimes.
Em 2001, o Estado brasileiro e o Maranhão chegaram a ser denunciados à Organização dos Estados Americanos (OEA), em decorrência dos assassinatos de Raniê Silva Cruz (1991), Eduardo Rocha da Silva (1997) e Raimundo Nonato da Conceição Filho (1997). Os crimes ocorreram em Paço do Lumiar, também na Grande São Luís, próximo a São José de Ribamar.
Apoio da tecnologia
Com esses casos em evidência e com Chagas já apontado como suspeito das mortes de Daniel e Jonnathan, relatórios preliminares fizeram com que a polícia ligasse os dois últimos desaparecimentos, entre São José de Ribamar e Paço do Lumiar.
Foi aí que o inspetor Wilton Carlos Rego usou um dispositivo de GPS, até incomum na época para as forças de segurança, para georreferenciar e delimitar a área onde cadáveres foram encontrados anteriormente.
Com o auxílio tecnológico do GPS, a polícia constatou que Chagas se locomovia por aquele raio delimitado, região em que os corpos foram encontrados.
Em 2004, em audiência pública na Câmara dos Deputados, Wilton explicou a dinâmica dos crimes e como os indícios levaram ao serial killer. As declarações do inspetor e de outras autoridades do Maranhão estão disponíveis no Departamento de Taquigrafia, Revisão e Redação da casa legislativa.
“Esses pontos foram coletados por GPS. Todos estão obedecendo a uma escala. Essas cruzes representam o local onde foram encontrados os cadáveres. Estas são as casas das vítimas. Não sabíamos de nada da vida de Chagas, mas já começamos a identificar para delimitar a área territorial”, expôs Wilton na audiência da Câmara.
Ossadas humanas dentro de casa
Com os indícios em mãos, diligências foram feitas à casa de Chagas, onde os peritos acharam o que seria um pedaço de traqueia humana, em março de 2004, o que mais tarde foi confirmado por um laboratório de São Paulo.
No local, escavações resultaram na descoberta de ossadas humanas dentro do imóvel, cujo piso era apenas barro batido, e no quintal. Eram os cadáveres de Daniel e Jonnathan.
Preso temporariamente, sem ter como negar a autoria dos assassinatos de Daniel e Jonnathan, Chagas deu a localização de outro corpo, enterrado em uma rua a alguns metros da residência onde morava.
Com o andamento das investigações, o mecânico confessou ter matado 42 meninos, no Maranhão e Pará, dos quais muitos foram emasculados. A “assinatura” dos crimes fez a polícia e a Justiça concluir que, de fato, ele era o responsável pelos homicídios.
“Apenas a confissão era pouca, mas nós tivemos elementos de convicção profunda, baseados nos exames cadavéricos, nas lesões, nas assinaturas e nos rastros que queriam despistar a polícia por meio dos cartazes. Até em Altamira, ele driblava a polícia, ‘ajudando’ a polícia a procurar o assassino em série, quando ele o era”, considerou Uchôa.
30 assassinatos no Maranhão
Entre 1989 e 2003, Chagas confessou que matou 12 pessoas no Pará e 30 no Maranhão. Em março de 2004, a Justiça maranhense decretou a prisão preventiva do criminoso, até então detido em caráter temporário. Os processos foram distribuídos entre as comarcas de Paço do Lumiar, São José de Ribamar e São Luís.
Em paralelo, restou ao Ministério Público pedir a absolvição de dois homens acusados de alguns dos crimes, Genésio Alves e Francisco Lopes. Para a promotora Geraulides Mendonça Castro, em declaração na Câmara dos Deputados, Chagas confessou que cometeu os 30 assassinatos, no Maranhão.
Há um convencimento de que Francisco das Chagas, que conseguiu, em cima de 3 ossadas, dormir sem agonia, acordar sem preocupação e respirar sem susto, é o autor de todos os 30 homicídios que confessou no Maranhão (promotora Geraulides Mendonça)
Laudo indica psicopatia
Durante o processo, buscou-se entender o quadro psicológico e psiquiátrico de Chagas. A Band teve acesso ao lado que constatou “personalidade psicopática, com homoerotismo fixado no infantil, e psicose esquizo-paranoide latente”. A avaliação é do psicólogo e professor universitário Carlos S. Leal.
Outro documento traz detalhes do exame cadavérico de uma das vítimas, o estudante Bernardo Rodrigues Costa, de 14 anos, morto em 1992, em Paço do Lumiar.
O laudo conclui que o adolescente sofreu agressões com objeto perfurocortante e foi emasculado, ou seja, teve o pênis e testículos removidos.
Devido à decomposição dos corpos, muitos deles já como ossadas, a polícia não conseguiu concluir se as vítimas foram estupradas por Chagas. No exame de Bernardo, por exemplo, não foram encontrados vestígios de esperma do assassino no cadáver.
Preso desde 2004
Chagas nasceu em Caxias–MA e morou em Altamira, na década de 1990, onde também trabalhou como garimpeiro. A condenação dele, até agora, ocorreu apenas na Justiça do Maranhão. Em 2004, as autoridades maranhenses informaram que não tiveram respostas dos processos no Pará. O delegado reafirmou isso em entrevista à Band.
A última sentença de Chagas foi proferida em 2014 pelo 12º assassinato. Somadas, as penas já ultrapassam os 400 anos de prisão. O serial killer está no Complexo Penitenciário de Pedrinhas, em São Luís, desde 2004, quando teve a preventiva decretada.
Brasil, Maranhão e OEA
Sobre a denúncia à OEA, os governos brasileiro e maranhense assinaram um acordo de solução amistosa. Com isso, o Estado reconheceu responsabilidade internacional nos casos dos meninos emasculados e se comprometeu a reparar as famílias das vítimas e a adotar medidas de prevenção à violência sexual contra crianças e adolescentes.
No relatório da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA, o Maranhão admitiu equívocos e dificuldades nas investigações, o que prejudicou uma solução imediata dos crimes.
O estado alegou “deficiências estruturais do sistema de segurança até então existentes, a complexidade dos fatos e seu modus operandi, além da própria geografia dos crimes e impropriedade técnica de alguns procedimentos investigatórios”.