Como lei do Feminicídio teria mudado pena de casos como de carateca que matou esposa em SP

Com pena de 14 anos já cumprida, Cláudio Gonçalves assassinou, esquartejou e espalhou o corpo da mulher pelas ruas de Santos, no litoral paulista

Por Luiza Lemos

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"Crime do carateca" teria sentença diferente com a lei do feminicídio
"Crime do carateca" teria sentença diferente com a lei do feminicídio (Foto: Arquivo)

Desde 2015 o feminicídio, assassinato de mulheres em razão do gênero, é tipificado no Código Penal brasileiro. Atualmente a lei pode condenar de 12 a 30 anos quem pratica o crime, que está também na lista de crimes hediondos no país. 

Mas antes da criação da lei, muitos feminicidas eram enquadrados apenas no crime de homicídio e, a depender das qualificadoras, poderia ficar apenas de seis a 20 anos preso. 

Foi o caso do carateca Cláudio Gonçalves, que cumpriu 14 anos de reclusão por homicídio doloso e ocultação do cadáver da esposa, Márcia Lins Soares Gonçalves, em sacos de lixo. 

O caso, que ocorreu há 24 anos em Santos, no litoral de São Paulo, marcou a cidade tanto pelo teor do crime, já que o cadáver da dona de casa nunca foi encontrado e também pela investigação rápida da Polícia Civil. 

A morte de Márcia é semelhante à de diversos casos de feminicídio, que ainda têm taxas altas no Brasil. Atualmente uma mulher morre a cada seis horas no país, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Só em 2023 quase 1.500 mulheres foram mortas apenas por serem mulheres. 

Apesar de o crime não ter ficado impune, já que Cláudio foi condenado pelo caso, o carateca poderia ter pegado uma pena maior, de até 30 anos. 

Além disso, o assassinato poderia até ter sido evitado, mas a Lei Maria da Penha, de proteção à mulher, só foi criada quatro anos após o homicídio de Márcia, que havia feito boletins de ocorrência contra o marido em uma Delegacia de Defesa da Mulher antes de ser morta. 

Depoimentos, laudos, pedidos de prisão e a reconstituição do crime fazem parte do acervo coletado e relatado na matéria. 

Crime começou com discussão e desaparecimento

Casa onde o crime aconteceu (Foto: Arquivo)

A briga que terminou com a morte de Márcia Lins ocorreu no apartamento 01 do condomínio onde ela, o marido e os dois filhos moravam, na rua Pérsio de Queiroz. Em depoimento na época para a polícia, Doris Pinto, síndica do local, contou que na tarde do dia 30 de agosto ouviu uma briga, das várias que ocorriam no apartamento diariamente, entre o casal. 

Vizinhos próximos chegaram a relatar para ela que Márcia teria pedido por socorro, mas, como era algo corriqueiro, ninguém pensou em intervir. 

Mesmo assim, a síndica decidiu intervir na discussão a pedido de um vizinho que estava doente e incomodado com o conflito. Ao chegar, Doris contou que Cláudio apareceu na janela e disse que já “estava tudo calmo”, mas estranhou que Márcia não o acompanhou para continuar a discussão, o que também era normal. 

Ao justificar a confusão, Cláudio contou que ela teria sido motivada por Márcia ter trazido um cachorro para casa e ele não ter aprovado a chegada de mais um animal de estimação. Desde aquela tarde, Dóris não viu mais a vizinha. 

Quem também estranhou o comportamento de Cláudio foram os colegas de trabalho dele, em uma empresa de reparos de contêineres. No dia 30 de agosto, o carateca, que trabalhava como vigilante e porteiro no local, deveria ter chegado às 19h, mas chegou às 23h50. 

Ele chegou a pedir a um colega para mentir e dizer que ele havia entrado no trabalho às 21h30. No dia seguinte, dia 31, ele também se atrasou e chegou às 20h30, alegando que havia ido buscar os filhos na escola e que estava cuidando dos filhos porque a mulher sumira. 

Um dia depois, a irmã de Márcia Lins, Mariza Aparecida, recebeu um telefonema da mãe de Cláudio relatando que a nora havia desaparecido e que os dois filhos do casal estavam sob os cuidados dela. 

Ao questionar o cunhado sobre o paradeiro da irmã, ele teria desconversado e alegado que Márcia teria saído de casa e ido para uma amiga da igreja que o casal frequentava. A tal amiga teria dito que também não via Márcia e tampouco conversava com ela, apenas a conhecia de vista. 

Desconfiada, Mariza decidiu sozinha registrar a ocorrência por desaparecimento no dia 2 de setembro, já que, para a família, Márcia sairia de casa para pedir ajuda aos familiares e com os filhos, que ficaram com o marido. 

A irmã e os pais de Márcia Lins desconfiavam de alguma atitude de Cláudio, já que todos sabiam do histórico de brigas, agressões e até boletins de ocorrência em uma Delegacia de Defesa à Mulher. Os familiares de Márcia nunca mais a encontraram, até descobrirem o que ocorreu com a dona de casa. 

Dois dias depois, a confissão

Dado o histórico conflituoso do casal, Cláudio foi chamado para depor sobre o desaparecimento da esposa. Segundo o relatório do delegado Milhan dos Anjos, o carateca chegou a insistir na tese do desaparecimento, mas confessou após ser questionado sobre os ferimentos em diversas regiões do corpo, que para a polícia, indicam luta corporal e defesa da vítima, além das contradições no depoimento. 

Cláudio contou que a discussão que terminou em morte começou após Márcia chegar com um cachorro em casa, sendo que a família já tinha um animal. 

Com o decorrer da discussão, eles entraram em luta corporal e ele teria aplicado um golpe de caratê, fazendo com que a dona de casa caísse e batesse a cabeça em um móvel da sala. Desfalecida, Cláudio decidiu ‘dar um fim’ na vida de Márcia. 

Cláudio deixou o corpo da mulher estendido na sala e, no começo da noite do dia 30 de agosto, serrou o corpo de Márcia em várias partes.

Cláudio detalhou como cometeu o crime em depoimento (Foto: Arquivo)

O carateca confessou que colocou as partes do corpo em sacos de lixo, limpou a casa com produtos de limpeza que vendia, colocou os restos mortais da esposa na bicicleta que tinha e espalhou os sacos entre as ruas Comendador Martins, Guedes Coelho e Olinto Rodrigues Dantas. 

Ele também deixou outros dois sacos com partes do corpo na rua Washington Luiz e Campos Sales, todas na área do bairro da Encruzilhada. 

Os sacos com as partes do cadáver de Márcia teriam sido recolhidos pela empresa responsável pelo recolhimento do lixo na cidade e levados até o aterro da Alemoa, onde mesmo com diligências e investigações, nunca foram encontrados. 

Sem corpo, mas com muitos indícios de crime

Mesmo com a confissão, a defesa de Cláudio chegou a citar a imaterialidade do crime, já que não havia o corpo de Márcia. Mas, para evitar a impunidade, a prova testemunhal, a confissão e outros indícios foram usados pela promotoria no caso. 

O artigo 167 do Código de Processo Penal alega que se não é possível um exame de corpo de delito, ou os vestígios do crime desaparecerem, a prova testemunhal supre a falta. 

Dentre as testemunhas que foram cruciais para a condenação de Cláudio, está o primo de segundo grau dele, Carlos da Silva. Em depoimento, o primo citou que foi visitado no dia 3 de setembro pelo carateca, que falava que “havia dado um nocaute” e “um fim em Márcia”. 

Além disso, Carlos citou que o primo já havia ameaçado “dar um sumiço” na esposa, mas não acreditara em um primeiro momento que o crime havia sido consumado. Ao duvidar, o carateca teria dito: “Bom, vou rezar uma missa, pois até morta está me perturbando”. 

O amigo de Carlos, Reginaldo Rios, que estava no local, ouviu a mesma frase. A testemunha também contou à polícia que Cláudio contou que finalmente fez o que vinha prometendo há muito tempo e tranquilamente.

Reconstituição do crime, em que Cláudio indicou com clareza todos os passos do assassinato (Foto: Arquivo)

 
A condenação do carateca, que ocorreu em 2004, também foi possível graças à confissão do carateca não apenas em depoimento, mas também em uma entrevista a uma emissora de TV da região, às testemunhas e em um desenho feito por Cláudio explicando como esquartejou o corpo da esposa. 

A defesa de Cláudio chegou a alegar tortura por parte dos investigadores, o que foi negado após exames periciais e a comparação entre o depoimento dele na delegacia e à TV, usado como prova. 

Das provas materiais, os policiais apreenderam roupas de Cláudio com vestígio de sangue, o serrote usado para esquartejar Márcia, a bicicleta usada para o transporte do cadáver e os produtos químicos usados para tentar limpar a cena do crime. 

Além disso, foi feita uma reconstituição do crime, em que Cláudio indicou com clareza todos os passos do assassinato e ocultação do cadáver. 

Depoimentos mostram que crise conjugal e constantes violências eram conhecidas

Nas investigações, a polícia ouviu diversas pessoas, desde familiares até a assistente de direção da escola onde os filhos de Cláudio e Márcia estudavam. Em todos os depoimentos, se entende que o histórico de violências e a crise conjugal já não era segredo para ninguém. 

A assistente de direção do colégio dos filhos do casal comentou que o filho mais velho apresentava comportamento agressivo, o que poderia refletir uma situação em casa. Apesar do casal alegar que era culpa dos mimos dos avós paternos, o corpo docente estranhava o fato de Márcia não participar da vida escolar dos filhos. 

Vizinhos do casal comentaram também sobre a diferença social entre Cláudio e Márcia. Enquanto o carateca era bacharel em direito, a esposa era analfabeta e, segundo depoimentos, sofria preconceito por parte dos sogros, por ser negra e analfabeta. 

Uma vizinha do apartamento 01 na Rua Pérsio de Queiroz contou aos policiais que Márcia comentou que o filho mais velho lhe agredia com chutes a mando do pai e da avó, além da sogra instigar Cláudio a agredi-la.

No mesmo depoimento, ela afirmou que Márcia chegou a fugir de uma das brigas e se esconder no apartamento dela, com as roupas todas rasgadas.

Hoje solto, Cláudio tenta recomeçar a vida

Mais de 20 anos após a condenação e já com a pena cumprida por homicídio doloso e ocultação de cadáver, Cláudio Gonçalves hoje está livre e tenta recomeçar. Durante a apuração desta pauta, a reportagem foi informada que ele faz visitas frequentes ao Palácio da Justiça, em Santos.

Apesar do caso estar perto de ser arquivado, já que as penas foram cumpridas e o corpo nunca foi encontrado, Cláudio tenta “limpar o próprio nome”, como foi informado pela chefia da seção da vara criminal da cidade. A reportagem tentou contato com a defesa de Cláudio Gonçalves para comentar o caso, mas não foi atendida. 

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