Está em aberto se a vitória dos rebeldes sunitas e a fuga do ditador Bashar al Assad acarretará para a Rússia a perda de suas bases militares na Síria. Na segunda-feira (09/12), o porta-voz do Kremlin, Dmitri Peskov, declarou que seria "prematuro" falar do assunto. Portanto não há nenhuma decisão rápida à vista.
A Rússia mantém duas bases no país: uma marítima em Tartus, no Mar Mediterrâneo – herança da era soviética –, e desde 2015, uma aérea, em Hmeimim. A mídia do país afirma que os rebeldes agora no poder garantiram a Moscou a segurança de ambas. Embora não haja confirmação de outras fontes, os fatos parecem confirmar essa informação.
Nesta semana, embarcações navais russas parecem ter deixado temporariamente seu principal porto na Síria, segundo imagens de satélite analisadas pela rede BBC, em meio à incerteza após a queda de seu aliado, Bashar al-Assad.
Imagens registradas em 10 de dezembro mostram que alguns navios deixaram a base naval de Tartus desde domingo e estão atualmente manobrando em alto-mar no Mar Mediterrâneo. Enquanto isso, outras fotos tiradas no mesmo dia mostram que a atividade continua na principal base aérea de, Hmeimim, com jatos claramente visíveis na pista.om
"Até agora se vê, de fato, atividade de máquinas de transporte em Hmeimim, mas não na proporção que permita se falar de uma evacuação total", comenta o ex-analista do Conselho Europeu de Relações Exteriores (ECFR) Gustav Gressel.
"Eu avalio que, nos bastidores, a Rússia esteja negociando para manter as bases no país. Se tivesse renunciado a elas, haveria realmente uma evacuação em curso."
De "terroristas" a "rebeldes": Moscou abranda o tom
O historiador militar austríaco coronel Markus Reisner acredita que a base marítima em Tartus seja "mais importante estrategicamente" para a Rússia, a qual, "a partir de lá, pode projetar forças militares Mediterrâneo adentro". A base aérea de Hmeimim foi necessária para Moscou apoiar o regime de Assad contra os rebeldes liderados pela organização islamista Hayat Tahrir al Sham (HTS), "mas isso passou".
O cientista político britânico Mark Galeotti, autor de Putin's wars: From Chechnya to Ukraine (As guerras de Putin: Da Tchetchênia à Ucrânia) crê, antes, que ambas as bases sejam "muito importantes para as atividades russas no Mediterrâneo e na África".
Ele acha "interessante a rapidez com que a Rússia tentou chegar a um acerto com o HTS": até pouco tempo atrás, o ministro do Exterior Sergei Lavrov tachava o grupo de "terroristas", mas no fim de semana da tomada de poder eles passaram a ser chamados de "rebeldes". Antes mesmo da queda do regime Assad, o tom dos russos para com os fundamentalistas islâmicos já se tornara "muito mais educado", frisa o politólogo.
O que Moscou tem a oferecer aos rebeldes?
"A Rússia provavelmente espera fazer um acordo com o HTS", observa Galeotti. Mas o que Moscou tem a oferecer? Os rebeldes são até apoiados pela Turquia mas "não querem ser proxy, meros peões turcos, eles precisam de aliados, conexões". E é aí que a Rússia entra na história: "Os russos são bastante cínicos e pragmáticos, isso poderia ajudar o HTS a diversificar sua dependência de Ancara." Nesse contexto, Galeotti recorda que Moscou não só está presente na Síria no âmbito militar, mas também mantém relações comerciais estreitas com ela.
A especialista em Oriente Médio Burcu Ozcelik, do think tank britânico Rusi, não está convencida de que os rebeldes vão aquiescer rapidamente à vontade do Kremlin: "É altamente duvidoso que o HTS vá se apressar em ser percebido como aliado de [presidente russo, Vladimir] Putin, ou a dar sinal verde para uma presença militar russa duradoura no litoral mediterrâneo sírio."
A ressalva é especialmente pertinente "considerando-se que Assad obteve asilo em território russo". Ozcelik prevê longas negociações, em que os protagonistas regionais Rússia e Irã "tentarão adaptar sua política externa para com a Síria".
Caso os militares russos tenham que deixar a Síria, mesmo que parceladamente, "eles não têm boas opções" para onde ir, avalia Mark Galeotti Pois a Síria sob Assad era fortemente dependente de Moscou, e na região não nenhum outro país oferece as mesmas condições.
A Líbia está entre as alternativas possíveis mencionadas com mais frequência. Lá, a Rússia mantém contatos com o general Khalifa Belqasim Haftar, que tem mercenários russos do Grupo Wagner lutando a seu lado. A imprensa ocidental noticia sobre intenções russas de montar uma base marítima na Líbia. Markus Reisner supõe que possa se tratar de Tobruk.
Para Galeotti, não será fácil concretizar essa opção, por falta de infraestrutura disponível no local. O mesmo se aplica ao Sudão, com cujo governo os russos vêm negociando há anos a instalação de uma base no Mar Vermelho. Contudo, "aonde quer que eles vão – Líbia, Mali, Sudão –, não vão encontrar uma situação como na Síria", conclui o politólogo e historiador.
O que Ucrânia pode lucrar com a nova situação?
Nesse contexto, discute-se ainda uma outra questão: se a Rússia retirar suas tropas da Síria, o que isso significa para a guerra que ela trava na Ucrânia desde 24 de fevereiro de 2022. "Sinceramente, o impacto é negligenciável", afirma Galeotti, classificando como insignificante o número de soldados russos que poderiam ser mobilizados para o front ucraniano.
Gressel concorda: "Para a Ucrânia, as boas notícias [a partir da Síria] são restritas." O Kremlin não tem capacidade, nem desejo, de abrir uma nova frente de combate enquanto guerreia com todos os meios possíveis no país vizinho.
"A Ucrânia tampouco vai se beneficiar de modo sensível da debilitação do Irã por Israel", sugere o o ex-analista do ECFR. A única consequência palpável para Kiev poderia ser que "alguns no Ocidente ganhem mais coragem" e que "a fragilidade de Putin possa impressionar Donald Trump". Essa, porém, é mais uma questão em aberto.
Autor: Roman Goncharenko