Como a ascensão da ultradireita transforma política de asilo da UE

Há anos a União Europeia vem reforçando suas políticas migratórias, mas êxitos recentes de siglas ultradireitistas colocam em dúvida reformas recentemente acordadas pelos países do bloco.

Por Deutsche Welle

Há menos de seis meses, a União Europeia (UE) selou um pacote de reformas para lidar com as notórias falhas do sistema comum de asilo que ficaram evidentes durante a crise migratória de 2015 e 2016, quando a chegada à Europa de mais de 1 milhão de refugiados sobrecarregou as mal preparadas autoridades nacionais.9

O acordo de migração e asilo da UE foi a culminação de mais de dez anos de negociações tensas. Ao fim, os 27 Estados-membros concordaram em medidas que permitem uma distribuição maior dos custos do acolhimento aos migrantes em todo o bloco e, ao mesmo tempo, o reforço da proteção das fronteiras externas para impedir sequer o ingresso no território da UE.

Atualmente, porém, o acordo parece estar mais fragilizado do que nunca, pois políticos da ultradireita exercem cada vez mais influência sobre as alavancas do poder nas capitais europeias, tanto diretamente, como parte de governos, quanto indiretamente, atuando na oposição.

Nas últimas semanas de setembro, alguns dos países que foram fundamentais em fazer avançar o pacote de reformas com entrada em vigor programada para 2026, passaram a anunciar medidas para endurecer suas políticas migratórias nacionais.

"Política migratória mais rígida" da história

O novo governo de direita da França, que depende tacitamente do apoio do ultradireitista Reunião Nacional (RN), anunciou planos para reforçar suas fronteiras.

A coalizão governamental de centro-esquerda de Berlim, pressionada pelo recente êxito eleitoral da ultradireitista Alternativa para a Alemanha (AfD) em eleições regionais no leste do país, anunciou um reforço dos controles em suas fronteiras com os demais países da UE, a fim de reduzir a entrada de migrantes.

No fim de setembro, a ministra responsável pela migração na Holanda, Marjolein Faber, do ultradireitista Partido pela Liberdade (PVV), anunciou planos para impor o que definiu como "a política migratória mais rígida de todos os tempos".

Numa atitude ainda mais controversa para seus vizinhos da UE, Faber informou a Comissão Europeia que vai procurar retirar seu país do pacote de medidas juridicamente vinculativo. Poucos dias mais tarde, a Hungria anunciou que tentaria algo semelhante,gerando breves temores de um efeito dominó. Por fim, logo se constatou que a exigência holandesa só seria debatida quando ou se os tratados da UE forem renegociados – coisa que não ocorrerá tão cedo.

Retórica versus realidade

Teoricamente são possíveis isenções de determinadas políticas previstas nas leis europeias, como no caso da política migratória da Dinamarca. Porém é necessário que a concordância dos demais Estados-membros seja incluída nas leis fundamentais do bloco.

Alberto-Horst Neidhardt, do think tank Centro Europeu de Políticas, adverte sobre o cuidado ao distinguir entre a retórica e a realidade: "Ouvimos mais e mais declarações políticas que tentam enviar mensagens aos eleitores nacionais. Eu faria uma distinção entre as declarações políticas dos governos nas últimas semanas e o trabalho técnico do acordo [migratório], que está a todo vapor."

Camille Le Coz, especialista do think tank Instituto de Políticas Migratórias em Paris, concorda com o colega: "Há uma lacuna entre o que se diz e o que se faz." Ao mesmo tempo, "o que se afirma publicamente pode ter ramificações para os demais países". A Grécia, por exemplo, se irritou com o anúncio da Alemanha sobre o aumento dos controles de fronteira.

Em todo o continente, os governos se mostram cada vez mais dispostos a transmitir uma imagem de rigidez contra a migração. Muitos políticos temem ser criticados por aceitar leis da UE que resultariam no acolhimento de um número maior de migrantes. Os Estados-membros se observam de perto mutuamente, e as acusações recíprocas de parasitismo ou hipocrisia não tardam a surgir.

Chances mínimas de realocar refugiados

Nos próximos dois anos, cada país deverá incluir em suas leis nacionais as mudanças previstas no acordo europeu. Sob as novas regras, os requerentes de abrigo e os refugiados deverão ser avaliados com mais rigor nos sete dias após sua chega em solo europeu.

As novas regras permitem que determinados requerentes sejam barrados nas fronteiras externas do bloco e avaliados em procedimentos acelerados, possibilitando uma rápida deportação, caso o pedido de asilo seja rejeitado.

Para políticos da ultradireita, contudo, como o primeiro-ministro húngaro, Viktor Orbán, a provisão mais problemática da lei é a que obriga todos os Estados-membros a acolherem os refugiados que forem aprovados por outras nações do bloco, de modo a distribuir mais uniformemente os recém-chegados.

Sob as regras UE, os pedidos de acolhimento dos refugiados devem, de modo geral, ser registrados nos países do bloco onde pisaram pela primeira vez solo europeu. Esse, porém, é um sistema obviamente injusto com nações como a Itália ou a Grécia, nas fronteiras sul do bloco europeu.

Se outros Estados-membros rejeitarem as realocações de migrantes, que deverão ocorrer aos milhares todos os anos, devem então pagar uma contribuição financeira de 600 milhões de euros (R$ 3,6 bilhões) ou fornecer apoio logístico.

Amsterdã, por exemplo, deverá escolher uma dessas opções, ao invés de aceitar as realocações, avalia o especialista Neidhardt. Isso não seria o mesmo que se retirar do acordo, algo que levaria anos para ser negociado, e "a Holanda permanecerá vinculada às regras que acabou de aceitar".

Política migratória prestes ao colapso?

O acordo sobre migração e asilo foi, na verdade, um meio consenso que não deixou ninguém totalmente satisfeito, sejam os linha-dura anti-imigração, como o governo húngaro, sejam os países nos limites do bloco, como a Grécia, ou as principais destinações finais dos migrantes, que é o caso da Alemanha.

Ainda menos impressionados estão os defensores dos diretos dos refugiados e migrantes, segundo os quais, o pacto não impedirá milhares de mortes todos os anos nas travessias do Mar Mediterrâneo, além de gerar novos entraves ao direito de requerer asilo.

Para Neidhardt, apesar do que os governos europeus afirmam em público, eles sabem que o acordo é "grande demais para poder fracassar". "Caso o pacto fracasse, isso significaria o fim do sistema comum europeu de asilo. Isso não é do interesse de nenhum dos Estados-membros, seja Grécia, Holanda, ou quem for."

De fato, o reforço das políticas migratórias da UE precede o acordo e o recente ganho de influência da ultradireita em capitais como Estocolmo e Roma. Há anos a UE vem aumentando seus gastos com a proteção das fronteiras e com o envio de recursos para os países de origem dos migrantes, na tentativa de reduzir o número dos que tentem buscar uma nova vida na Europa.

Longo caminho para a reforma

Para Camille Le Coz, o acordo ainda é a melhor maneira de os Estados-membros lidarem com as inúmeras questões envolvendo o gerenciamento da migração. Ela frisa que assegurar aos países do bloco a estrutura política necessária para garantir que as coisas continuem avançando deve ser uma prioridade da Comissão Europeia.

"O motivo por que temos esse sistema comum europeu de asilo está relacionado ao Espaço de Schengen [a zona de livre circulação entre as fronteiras dos países da UE] e à liberdade de movimento."

Para a especialista, é necessário aguardar para ver se esse frágil acordo conseguirá se manter. Os primeiros prazos essenciais já se anunciam: até o fim de 2024, todos os Estados-membros devem finalizar seus planos de implementação das medidas previstas no pacto. "Acho que vai ser interessante observar isso."

Autor: Ella Joyner

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