[Coluna] Brasil mostra ao mundo como enfrentar o autoritarismo

Depois de anos sendo notícia por sermos governados por Jair Bolsonaro, que nunca escondeu ser fã da ditadura militar, agora exibimos ao mundo coisas melhores, como a história daqueles que resistiram ao autoritarismo.

Por Deutsche Welle

Qualquer pessoa que acompanhe o noticiário sabe que não vivemos tempos fáceis. A extrema direita e as ideias autoritárias há décadas não estavam tão fortes no mundo. Em duas semanas, Donald Trump assume a presidência dos Estados Unidos. Na Argentina, Javier Milei fechou um museu de memória da ditadura. Na Alemanha, a AFD, de direita radical, é o segundo partido na preferência do eleitorado. E, no Brasil, como soubemos ano passado, escapamos por pouco de um golpe de estado sanguinolento.

E o flerte com o autoritarismo segue forte. A sensação é de que estamos sempre à beira do fascismo, o que dá medo. Muito.

Mas algumas personagens da história nos ajudam a enfrentar esse temor nesses tempos difíceis. E também a lembrar o quanto as ideias autoritárias são perigosas e precisam ser combatidas. Uma delas é Eunice Paiva, interpretada por Fernanda Torres no filme Ainda estou aqui. A atuação brilhante a levou a ganhar o Globo de Ouro de Melhor Atriz em Filme de Drama, um feito gigantesco, que deixou o Brasil em clima de "ganhamos a Copa".

E temos mesmo motivos para celebrar. Depois de anos virando notícia por sermos governados por Jair Bolsonaro, que nunca escondeu ser fã da ditadura e de torturadores, agora mostramos ao mundo coisas melhores, como a história de heróis e heroínas que resistiram aos anos de autoritarismo no país.

"A arte pode sobreviver na vida, mesmo durante tempos difíceis, assim como os que Eunice Paiva passou. Com tanto problema hoje em dia no mundo, tanto medo, esse é um filme que nos ajudou a pensar em como sobreviver em tempos como esses", disse Fernanda Torres na madrugada de domingo ao receber o prêmio mais prestigioso de sua carreira.

Fernanda está coberta de razão, e sua fala emociona. Eunice, viúva de um homem que não estava oficialmente morto (ela só foi conseguir a certidão de morte do marido em 1996, como aparece no filme), cuidou sozinha dos cinco filhos, se tornou advogada ativista, lutou por justiça e nos deu várias lições de força, coragem e resiliência.

É muito simbólico que toda essa consagração de heróis que se opuseram ao regime autoritário aconteça dois anos após o fim do governo Bolsonaro, quando a ditadura foi negada e torturadores foram exaltados pelo próprio presidente. E, não, o perigo não passou. Os negacionistas da ditadura estão vivos e fortes. E inclusive tentaram (sem sucesso) fazer uma ridícula campanha de boicote ao filme.

Nesses últimos anos, a arte e os artistas também foram atacados, e até Fernanda Montenegro, de 95 anos, que hoje celebra o sucesso da filha, foi xingada e chamada de "mamadora da lei Rouanet" e outros absurdos.

Para deixar tudo ainda mais forte, a consagração do filme que trata da vida da família de Rubens Paiva, ex-deputado e engenheiro que morreu assassinado nos porões da ditadura, aconteceu há poucos dias do 8 de janeiro, data que vai ficar marcada como outro dia vergonhoso da história do Brasil. Há dois anos, prédios do governo em Brasília foram invadidos por bolsonaristas, num ataque às instituições democráticas que poderia ter levado a um golpe de Estado.

As ideias golpistas, sabemos hoje, eram sérias e absurdamente sanguinolentas. O plano, sabemos hoje, incluía assassinar o presidente Lula, o vice Geraldo Alckmin e o ministro do STF Alexandre de Moraes. Dá até medo imaginar quantas outras pessoas poderiam ter sido assassinadas se o plano desse certo. E não é difícil supor que pessoas como Rubens Paiva, que nem era um militante, mas apenas um democrata que se opunha ao regime, poderiam ter sido mortas.

"O papel da arte é lembrar para que não se repita", disse Marcelo Rubens Paiva, filho de Rubens e Eunice Paiva e autor do livro Ainda estou aqui, no qual o filme é baseado, em entrevista à DW. Esse recado já havia sido dado no Brasil. Com o sucesso do filme, jovens começaram a se interessar pela ditadura. No TikTok, alguns deles passaram a contar a história dos seus pais ou avós vítimas da ditadura. Agora, o Brasil mostra essa história para o mundo para que o horror nunca seja esquecido. E para que não se repita. É para comemorar e se emocionar mesmo.

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Nina Lemos é jornalista e escritora. Escreve sobre feminismo e comportamento desde os anos 2000, quando lançou com duas amigas o grupo "02 Neurônio". Já foi colunista da Folha de S.Paulo e do UOL. É uma das criadoras da revista TPM. Em 2015, mudou para Berlim, cidade pela qual é loucamente apaixonada. Desde então, vive entre as notícias do Brasil e as aulas de alemão.

O texto reflete a opinião da autora, não necessariamente a da DW.

Autor: Nina Lemos

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