Cinco lições do embate entre Carrefour e Brasil

CEO da rede varejista faz pedido de desculpas após dizer que carne brasileira não atendia às exigências e normas do mercado francês. Filial brasileira do grupo sofreu boicote e crise de imagem.

Por Deutsche Welle

O Carrefour voltou atrás em suas críticas à carne produzida no Brasil, após seis dias de mobilização de setores empresariais brasileiros que resultaram em ameaça de desabastecimento das lojas do grupo no país.

A crise começou na quarta-feira passada (20/11), quando o CEO global do grupo francês, Alexandre Bompard, enviou uma mensagem pública ao presidente da Federação Nacional dos Sindicatos de Agricultores da França anunciando que não compraria mais carnes dos países do Mercosul para abastecer o mercado francês, pois ela "não atende às suas exigências e normas".

A mensagem era um sinal de oposição ao acordo de livre comércio entre Mercosul e União Europeia (UE), que será discutido na próxima semana em uma reunião de negociadores de ambos os blocos – que gostariam de fechar o texto, em debate há mais de 20 anos, antes da posse de Donald Trump na Casa Branca. E também uma forma de prestigiar os agricultores franceses, notórios por sua capacidade de mobilização.

Mas as repercussões foram muito além da França e dos negociadores da UE. Frigoríficos brasileiros decidiram pararam de abastecer as lojas do Carrefour no Brasil – maior operação do grupo fora da França –, com o apoio do ministro da Agricultura, Carlos Fávaro, e do presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira. Formou-se diante da empresa uma crise de imagem superior à da tortura e morte de um homem negro em uma unidade da rede em 2020, e nesta terça-feira Bompard pediu desculpas formais ao governo brasileiro.

A DW conversou com Felipe Monteiro, professor de estratégia global do INSEAD, uma faculdade de administração da França, e Felippe Serigati, pesquisador do Centro de Estudos do Agronegócio da Fundação Getúlio Vargas (FGV Agro), para analisar cinco aspectos ligados às decisões tomadas pelo Carrefour e às reações do setor privado e do governo brasileiros.

1) Protecionismo em alta

A decisão do Carrefour de interromper a compra de carne de países do Mercosul tem impacto mais simbólico do que prático – cerca de 90% das carnes vendidas nas lojas da rede na França já vêm da pecuária francesa. Mas são o capítulo mais recente do protecionismo comercial, que está em alta no mundo e deve ganhar mais força com a posse de Trump na Casa Branca, avalia Serigati.

O presidente eleito dos Estados Unidos afirma que "ama tarifas", e já anunciou que todos os produtos importados que chegam ao país terão que pagar mais impostos alfandegários.

"O mundo está entrando num ambiente crescentemente protecionista. É ruim para o mundo, mas é a realidade que temos para hoje", afirma Serigati. "E esse imbróglio com o Carrefour não será o último que veremos."

2) CEOs com cada vez mais dimensão geopolítica

A nota de Bompard destinava-se principalmente a agricultores e políticos franceses, mas rapidamente ganhou contornos de uma crise diplomática, poucos dias após a visita oficial do presidente francês, Emmanuel Macron, ao Rio de Janeiro para a cúpula do G20.

No Brasil, o ministro da Agricultura e o presidente reagiram, e tanto a embaixada francesa no Brasil como a embaixada brasileira na França se envolveram ativamente nas conversas.

"Isso mostra que hoje, não importa o setor, declarações de CEOs podem ter impactos geopolíticos acelerados e inesperados", diz Monteiro, do INSEAD. "É um lembrete do quanto uma empresa global, na hora de se posicionar, tem que pensar no impacto global, e não apenas no local."

Ele avalia que a mensagem inicial do CEO do Carrefour era mais focada no mercado francês, sem levar em conta o quão rapidamente ela ganharia proporções globais e acabaria tendo efeitos negativos importantes para a própria empresa.

"Antigamente, se você estava em um setor mais crítico, como defesa, tinha que tomar muito cuidado com o que falava pelos impactos políticos. Hoje isso vale para diversos setores, incluindo varejo e alimentação – pronunciamentos podem ganhar uma conotação geopolítica muito rapidamente, acelerados por mídias sociais", afirma.

3) Cúpula Mercosul-UE acirrou clima

A manifestação inicial do CEO do Carrefour e os protestos de agricultores e pecuaristas franceses estão relacionados a uma reunião de cúpula entre o Mercosul e a UE que ocorre na próxima semana, e que tentará chegar a uma versão final sobre o acordo de livre comércio entre os dois blocos.

A eleição de Trump é um estímulo para o acordo, diz Serigati, da FGV, pois interessa a ambos os blocos fechá-lo antes que ele tome posse na Casa Branca. Ele prevê que países da UE provavelmente adotarão tarifas de retaliação contra os Estados Unidos, e que isso criaria um clima desfavorável para avançar no livre comércio com o Mercosul.

Negociadores do Brasil afirmaram ao jornal Valor Econômico que estão moderadamente otimistas sobre a cúpula da próxima semana – e que segue existindo dissenso em relação a menções no texto do acordo sobre desmatamento e proteção de compras públicas como estratégia industrial, defendida pelo governo Luiz Inácio Lula da Silva.

"Quando você está numa fase de pré-finalização de negociação, sempre há técnicas de mobilização para tentar melhorar a barganha de cláusulas específicas", diz Monteiro, do Insead.

4) Reação brasileira pode ser forte quando custo é baixo

Outro aspecto notável na crise entre o Carrefour e o Brasil foi a velocidade e a magnitude da reação dos produtores e comerciantes brasileiros.

Na sexta-feira, dois dias após a carta do CEO do Carrefour ser publicada, JBS e Masterboi anunciaram que parariam de vender carnes bovinas ao Carrefour Brasil, e foram acompanhadas por outros frigoríficos, como Marfrig. O boicote foi depois estendido às carnes suína e de frango, e outros setores entraram na mobilização.

Uma carta aberta em defesa da carne brasileira e contra o Carrefour organizada pela Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carnes (Abiec) reunia no domingo a assinatura de 44 entidades do setor produtivo, incluindo a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), a Associação Brasileira da Indústria de Máquinas e Equipamentos (Abimaq) e a indústria sucroenergética (Unica), entre outras.

O diretor executivo da Federação de Hotéis, Bares e Restaurantes do Estado de São Paulo (Fhoresp), Edson Pinto, também pediu a seus associados que parassem de comprar produtos no Carrefour e nas atacadistas que pertencem à rede – Atacadão e Sam's Club.

Para Serigati, da FGV, a declaração do CEO do Carrefour gerou prejuízos para o grupo, mas trouxe um "grande resultado positivo" para o Brasil: "Uma união de diversos segmentos, não apenas do agronegócio brasileiro, mas em defesa do interesse nacional".

Ele avalia que parte do sucesso do boicote ao Carrefour brasileiro se deve ao fato de ter sido uma decisão de custo muito baixo para as empresas brasileiras. O montante de carne exportado para a França representa 0,02% do total exportado pelo país de janeiro a outubro deste ano. E as carnes não entregues ao Carrefour brasileiro poderiam ser vendidas a outros supermercados, que seguiriam com a clientela interessada em comprar o produto.

"O custo dessa mobilização era praticamente nulo. E deixou uma sinalização a qualquer outro país que tenha operações no Brasil para tomar cuidado. Temos força para a defesa de nossos interesses, inclusive de maneira mais pró-ativa", diz.

5) Agricultores franceses têm pouco impacto no PIB, mas grande na política

Não é de hoje que os agricultores franceses são famosos por sua capacidade de influenciar no debate político do país – apesar de representarem 1,6% do PIB – e de gerar tumultos e imagens fortes nas cidades, com tratores despejando esterco, terra ou produtos como leite em frente a locais de decisão política.

"Existe na França uma cultura de contestação, de se manifestar, e os agricultores são muito vocais com uma série de temas", como flexibilização de regras de produção e demandas por mais subsídios. "Talvez o Mercosul esteja hoje servindo para eles como um ponto de mobilização, mas eles têm várias outras reivindicações", afirma Monteiro, do INSEAD.

Mas ele pondera que não há um setor agrícola único na França, e que enquanto alguns perderiam com o acordo com o Mercosul, outros poderiam sair ganhando, como produtores de queijos ou os envolvidos na cadeia do vinho.

Macron está do lado dos agricultores que protestam e é contra o acordo com o Mercosul. A defesa da agricultura local passa ainda pela defesa de um modo de vida e de padrões de consumo no país.

A França também enfrenta um momento político complicado, com disputas sobre o Orçamento de 2025 que impedem sua aprovação no Parlamento, greves em outros setores da economia e uma perspectiva de maiores dificuldades após a posse de Trump na Casa Branca. "Está todo mundo em carne viva, qualquer coisa gera uma reação mais forte", diz Monteiro.

Autor: Bruno Lupion

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