"Baviera Tropical": os anos de Josef Mengele no Brasil

Novo livro traz detalhes inéditos sobre o período de 18 anos em que o médico nazista se escondeu no Brasil. Autora teve acesso a documentos inéditos do serviço secreto israelense, que procurou por Mengele no país.

Por Deutsche Welle

Após fugir da Europa, o médico e oficial nazista Josef Mengele viveu por 18 anos no Brasil, até a sua morte. Apesar da longa estadia, sua passagem pelo país foi pouco documentada. O livro Baviera Tropical, da jornalista Betina Anton, busca suprir essa lacuna.

A ligação da autora com o tema começou ainda na infância. De família alemã, Betina estudou em uma escola germânica. Quando tinha apenas seis anos, sua professora desapareceu. Mais tarde, Betina saberia que a senhora Liselotte Bossert fora afastada pelo fato de ter acobertado Mengele e enterrado seu corpo após a morte do médico nazista em 1979.

"Fui atrás dessas primeiras informações e achei que uma personagem essencial dessa história seria a própria Liselotte. É aí que o livro começa, porque não foi uma coisa tão simples assim”, conta a autora, que teve dificuldades para localizar a antiga professora após as notícias sobre a morte de Mengele, em 1985.

"Eu descobri com o diretor da escola que ela ainda estava viva, e resolvi ir atrás dela. Enfim, nós conversamos. O que eu não esperava era ser ameaçada por ela, que dizia ser um caso perigoso”, revela.

Josef Mengele foi apelidado de "anjo da morte” por sua atuação no campo de concentração de Auschwitz, onde tinha a palavra final sobre o destino de prisioneiros. No local, o médico realizou experimentos macabros, inspirado pelo ideal de eugenia que guiou a pesquisa médica durante o Terceiro Reich.

O oficial fugiu inicialmente para a Argentina após a queda de Hitler, seguindo os passos de milhares de outros nazistas no período. Depois, mudou-se para o Paraguai e veio para o Brasil em seguida, temendo ter o mesmo destino de Adolf Eichmann, que foi capturado na Argentina pelo Mossad, o serviço secreto israelense, em 1960.

A jornalista Betina Anton teve acesso aos arquivos dao Mossad e entrevistou o comandante da caça a Mengele no Brasil. Seu livro elucida como o médico nazista foi capaz de criar uma nova vida no país, ainda que sob o medo permanente de ser descoberto.

"Ele fazia viagens, ia à praia. Nas cartas, ele fala sobre uma viagem em que explorou cavernas com um amigo, outra em que foi com um grupo para a cachoeira, conta ter ido à churrascaria, ao sítio. Dentro do círculo dele, estava muito à vontade”, comenta a jornalista.

Embora a obra tenha como foco o período em que Josef Mengele viveu no Brasil, Anton dedica três capítulos do livro para explicar quem foi o médico e as atrocidades que cometeu em nome da Alemanha nazista. Crianças gêmeas eram sua principal cobaia.

"No laboratório dele, em Auschwitz, havia uma parede cheia de olhos humanos. Ele participava de um estudo sobre a heterocromia, condição em que cada olho é de uma cor diferente. Pelos relatos, fica claro que ele mandava matar as pessoas para arrancar seus olhos”, diz Betina.

"Ele praticou uma série de crueldades. As pesquisas que realizou em Auschwitz eram completamente sádicas, e muitas delas, sem sentido”, conclui.

O livro, editado pela Todavia, será lançado neste sábado (11/11), em São Paulo. A obra será editada em outros oito países, incluindo Estados Unidos, Polônia e Hungria.

DW Brasil: Como uma história vivida na infância te motivou a escrever o livro?

Betina Anton: Eu estudei em uma escola alemã de São Paulo. Quando eu tinha seis anos de idade, minha professora desapareceu de repente, no meio do ano letivo. Começou a rolar um "zum zum zum” na escola, e as pessoas citavam o nome Mengele.

Eu sabia que tinha acontecido alguma coisa grave, mas não sabia exatamente o quê. Só sei que a professora saiu da escola, e outra professora passou a dar aula. Mais tarde, vim a saber que essa professora, Liselotte Bossert, foi a quem abrigou o Mengele no Brasil, nos últimos dez anos de vida dele. E foi ela que enterrou o Mengele com nome falso, no cemitério do Embu.

Este foi um estalo inicial para eu ter uma curiosidade sobre a história: quem ele era e por que a Liselotte fez isso? Eu tinha minha visão de criança, uma sensação sobre o que tinha acontecido. Mas a compreensão de um adulto é diferente.

Eu resolvi pesquisar, e comecei a ler alguns livros que existem no exterior. Aqui no Brasil, não tinha nenhum livro que explicasse a vida do Mengele. Só havia material de imprensa.

Em 1985, quando o corpo do Mengele foi descoberto no Brasil, houve uma cobertura grande. Fui atrás dessas primeiras informações e achei que uma personagem essencial dessa história seria a própria Liselotte. É aí que o livro começa, porque não foi uma coisa tão simples assim. Ela desapareceu da escola e também da imprensa. O nome dela aparece em vários artigos de 1985, mas, depois disso, ela some completamente do radar. Nem os conhecidos sabiam onde ela estava. Eu descobri com o diretor da escola que ela ainda estava viva, e resolvi ir atrás dela. Enfim, nós conversamos. O que eu não esperava era ser ameaçada por ela, que dizia ser um caso perigoso. No livro, conto mais detalhes sobre isso.

É correto afirmar que Mengele viveu à vontade no Brasil?

Podemos olhar para a vida no Mengele no Brasil de duas maneiras. Ele não ficava totalmente à vontade, porque tinha muito medo de ser pego pelo Mossad. E era extremamente cauteloso, gostava de sair pela rua com um chapéu de feltro e nunca dava seu nome verdadeiro.

Mengele estava sempre com esse medo de ser pego "pelos judeus”, como ele dizia. Nesse sentido, ele não estava à vontade. Quando ele morou em Serra Negra, no começo dos anos 1960, construiu uma torre de observação de dez metros, pra ver quem vinha pela única estrada de terra que dava no sítio. Ele viveu em Serra Negra logo após o sequestro do Eichmann, que foi muito impactante para o Mengele. Aliás, foi por este motivo que ele veio para o Brasil.

Até então, Mengele vivia no Paraguai. Ele era cidadão paraguaio, então sabia que não poderia ser extraditado para a Alemanha, por exemplo. Desde 1959, havia uma ordem de prisão contra ele na Alemanha. A partir do momento em que o Mossad sequestra o Eichmann, em 1960, ele percebe que não está mais protegido no Paraguai e vem para o Brasil. Ao mesmo tempo, ele construiu uma rede de amigos aqui, que era pequena, mas muito leal a ele. Aí a gente entra no conceito do título do livro, Baviera Tropical. Ele tinha afinidades com essa rede de amigos. Eles gostavam muito de discutir literatura, por exemplo. Além disso, trocavam muitas cartas.

O Mengele gostava de escrever e se correspondia muito com um amigo que retornou para a Áustria, o Wolfgang Gerhard. Graças a isso, conseguimos saber detalhes íntimos da vida do Mengele no Brasil. Eu tive acesso a essas cartas, que estavam na Polícia Federal, e pude ver como era a rotina dele, em detalhes. Nesse sentido, ele estava à vontade. Quando ele morava em Eldorado, na periferia de São Paulo, saía para passear com os cachorros. Ele fazia viagens, ia à praia. Nas cartas, ele fala sobre uma viagem em que explorou cavernas com um amigo, outra em que foi com um grupo para a cachoeira, conta ter ido à churrascaria, ao sítio. Dentro do círculo dele, ele estava muito à vontade.

Como você obteve documentos sobre a morte do Mengele no Brasil?

Eu não encontrei esses registros no Brasil, apenas nos arquivos do Mossad. As autoridades brasileiras não sabiam dessa operação. Quem me contou isso foi o Rafi Eitan, comandante de operações do Mossad no sequestro do Adolf Eichmann em Buenos Aires.

Quando eu o entrevistei em Tel-Aviv, ele tinha 90 anos. Durante a produção do livro, veio a falecer. A ideia do Mossad era capturar o Mengele junto com o Eichmann, mas o Eitan foi contrário à ideia. Ele achava que o processo com o Eichmann ia muito bem, e incluir o Mengele na operação poderia colocar tudo a perder. Quando eles vieram para o Brasil, conseguiram recrutar um agente brasileiro do Mossad, o Yigal Haychuk, outra novidade que apresento no livro. Ele também já era um senhor quando nos encontramos. Foi ele que ajudou o Mossad nessa busca aqui no Brasil, que aconteceu totalmente às escondidas.

Após esse mergulho na vida do Mengele, como você avalia as motivações de suas práticas?

Eu acho que ele estava extremamente determinado a ser um grande cientista e um grande acadêmico. Como ele se formou nessa medicina do Terceiro Reich, da eugenia, extremamente racista, para ele tudo estava dentro dessa lógica macabra. Ele queria seguir isso até as últimas consequências, seu objetivo era ser um grande cientista. Ele não tinha escrúpulos, faria qualquer coisa que fosse necessária para alcançar esse objetivo. Ele queria se destacar. Eu noto que ele tinha um desespero, de conseguir um resultado para brilhar na carreira.

Mengele tinha uma formação muito boa, dois doutorados, um em Medicina, e outro em Antropologia. A medicina do Terceiro Reich tinha um viés racista. Quando ele era estudante, surgiram departamentos na universidade justamente para tentar provar a superioridade da raça ariana. Chegando em Auschwitz, ele quis se aproveitar do que ele considerava como material humano, de todas aquelas pessoas que estavam lá, de diferentes "raças”, um conceito biológico para os nazistas. Ele resolveu fazer diversas pesquisas, e muitas delas não tinham nada a ver com o que se estudava na universidade.

Quando o Mengele fazia estudos com gêmeos, por exemplo, injetava uma doença propositalmente num gêmeo e via como essa doença se desenvolvia. Quando um gêmeo morria, ele mandava matar o segundo e dissecar os corpos dos gêmeos. A ideia era comparar o que aconteceu com os dois, algo que não seria possível em qualquer outro contexto.

Ele foi de uma crueldade imensa, fazia isso com crianças. No laboratório dele em Auschwitz, havia uma parede cheia de olhos humanos. Ele participava de um estudo sobre a heterocromia, condição em que cada olho é de uma cor diferente. Pelos relatos, fica claro que ele mandava matar as pessoas para arrancar seus olhos. Ele praticou uma série de crueldades. As pesquisas que realizou em Auschwitz eram completamente sádicas, e muitas delas, sem sentido.

Autor: João Pedro Soares

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