Descendentes de povos africanos no Brasil enfrentam dificuldades para identificar peças usadas por seus ancestrais – e que ajudariam a reconstruir tradições esquecidas há décadas no país.
Um exemplo é a comunidade que vem da linhagem pura da nação Xambá (pronuncia-se tchan bá). Esse povo é oriundo de uma região entre os países africanos da Nigéria e de Camarões. Grande parte de seus artefatos foi confiscada pela polícia na época do Estado Novo, no qual o Brasil foi governado pelo presidente Getúlio Vargas. Para o regime político que vigorou de 1937 a 1945 e era cunhado no ideal de Estado centralizador, os terreiros eram ameaças à ordem social.
Desde então, as peças dos Xambá nunca foram identificadas nem encontradas.
Objetos acabaram em São Paulo?
No acervo do Centro Cultural São Paulo (CCSP), a reportagem da DW encontrou uma notícia de jornal que falava de uma batida realizada no âmbito da "campanha contra os xangôs, catimbus, cartomantes e outros centros de exploração de boa fé". O texto menciona que a ação havia "recrudescido" ao saber que os adeptos "da seita africana estavam burlando a lei". Os membros eram acusados de crimes de "profanação, charlatanismo e de maus-tratos".
No relato, é possível ver que diversos terreiros foram fechados, dentre eles o do povo Xambá.
Os artefatos recolhidos nos terreiros costumavam ser levados para o depósito da sede da Secretaria de Segurança Pública de Pernambuco, hoje chamada de Secretaria de Defesa Social (SDS). Eles eram recolhidos como "evidências de crime contra a ordem social". Foi neste local que parte deste acervo foi adquirido por uma missão organizada por Mário de Andrade, em 1938.
A missão tinha o objetivo de documentar a musicalidade dos terreiros de Recife e Alagoas. Formavam o grupo o arquiteto Luis Saia, o maestro Martin, o técnico de som Benedito Pacheco e o auxiliar Antônio Madeira.
Durante a incursão, o grupo criou afinidade com o delegado de Polícia Civil João Roma, que concedeu o acesso aos objetos. São 1.200 artefatos etnográficos/folclóricos, que integram o Acervo da Missão de Mário de Andrade sob os cuidados do CCSP. Parte desses artefatos pertence aos terreiros de Recife e às demais localidades visitadas pela missão.
Jogados em depósito, objetos são difíceis de identificar
Segundo o historiador e responsável pelo acervo, Rafael Sousa, "é impossível estabelecer a proveniência [identificação daqueles a quem pertencem os objetos], pois eles estavam todos misturados no depósito da polícia". As peças, que passaram por um processo de restauração em 1990 e por isso não possuem as características originais, eventualmente são expostas ao público.
Dentre os artefatos, há ilus, manchados, castiçais, abês [instrumento musical que é uma cabaça envolvida em miçangas], lanças, quartinhas e gamelas usadas para servir alimentos aos orixás. Na época da aquisição, membros da missão conseguiram identificar os nomes de alguns artefatos com a ajuda da mãe de santo Guida Ferreira Mulatinha e dos pais de Santo Antônio Romão e Apolinário Gomes.
A reportagem da DW apresentou o catálogo ao historiador e membro do terreiro Hildo Leal. Foi a primeira vez que um descendente dos Xambás viu o acervo que pode ter algumas das suas peças. Leal explica que "as quartinhas e as gamelas fazem parte dos assentamentos, locais sagrados dos orixás. Ver esses objetos no catálogo mostra a violência dessas batidas policiais, pois pessoas não iniciadas [consagradas aos orixás] não podem ter acesso a esses locais ", explica.
Ao olhar as páginas, Hildo Leal identificou alguns objetos que mantêm as características da tradição Xambá até os dias de hoje. "O Machado de Xangô, artefato usado em rituais religiosos, as quartinhas e os alguidares dos orixás, assim como as flechas e castiçais que constam no catálogo, são idênticos aos que usamos até hoje na tradição xambá", assegura.
Diante do acervo que representa um período difícil da história das comunidades de matriz africana e a realidade atual, o líder Xambá afirma emocionado: "Hoje, não temos total liberdade e respeito à nossa religião, mas as coisas melhoraram muito. Hoje, temos como nos defender pela Lei e pela Constituição", avalia.
Na tentativa de aproximar essas peças do público, o Museu da Abolição construiu um acervo digital em 3D e montou uma exposição para que o público conhecesse esses artefatos. Mas eles também não conseguiram identificar a quais nações esses objetos pertencem.
A museóloga Daniane Carvalho, que coordenou a produção do acervo digital, lamenta que essa identificação não tenha sido realizada. "Há cálices sagrados entre as peças. Uma pessoa sem vínculo com a religião não pode acessar esses artefatos. É uma pena que não haja identificação", declara.
A outra parte dos artefatos apreendidos se encontra no acervo do Museu do Estado de Pernambuco (Mepe).
O acervo de Pernambuco
As peças que compõem o acervo de Pernambuco chegaram ao espaço como reserva técnica, ou seja, não foram identificadas logo de início. Só em 1983, ganharam um catálogo com uma mínima identificação.
O Doutor em Antropologia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Renato Athias, ao lado do também antropólogo e museólogo Raul Lody, foi responsável por organizar as peças.
As peças integram a coleção Afro do Xangô em Pernambuco. Athias afirma que ele e Lody "criaram uma narrativa com o intuito de mostrar o que esses artefatos representam para a história do xangô e o contexto histórico de Pernambuco".
O antropólogo explica que muitas das peças estavam "desgastadas e precisaram passar por uma restauração. Porém, elas não voltam à sua forma original", lamenta.
Fechamento sistemático de terreiros na Era Vargas
A pesquisadora e professora da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap), Zuleica Dantas, explica que o estado se tornou um modelo da Era Vargas. "Agamenon Magalhães assumiu como interventor e fez deste estado um exemplo da Era Vargas. Ele e a sua equipe de governo eram congregados marianos [associações católicas dedicadas à Virgem Maria, fundadas no século 16], por isso, o controle aos terreiros se intensificou por aqui", enfatiza.
Também neste período, a Congregação Mariana lançou um projeto de "recatequizar pernambuco, empreendendo jornadas de cristianização, o que leva à criação de um Decreto que proíbe a prática do baixo espiritismo [definição dada a correntes religiosas de matriz africana na época]", explica a pesquisadora.
Os detalhes desta história estão na pesquisa O combate ao catimbó: práticas repressivas às religiões afroumbandistas nos anos 30 e 40, desenvolvida na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), de autoria da pesquisadora Zuleica Dantas. Ela investiga o tema há cerca de 40 anos.
Dantas explica que o controle dos terreiros envolve duas frentes. Uma delas é o uso da Folha da Manhã, jornal que pertencia ao próprio Agamenon Magalhães e que era usado para propagar as medidas de combate ao orixá Xangô. Neste veículo, também ganhavam destaque as batidas policiais aos terreiros.
Nessas abordagens, diversas comunidades religiosas de matriz africana do Recife e de outros estados do Nordeste tiveram seus artefatos sagrados confiscados, líderes presos e terreiros fechados. O próprio Terreiro Xambá, que nos anos 30 funcionava no bairro de Água Fria, zona Norte do Recife, foi alvo de diversas batidas.
Autor: Adriana Amâncio (Recife)