Apostas esportivas se espalham pela América Latina

Setor não encontra barreiras legais para atuação na região e gera preocupações entre especialistas. Possibilidade de ganhar dinheiro rápido atrai principalmente jovens.

Por Deutsche Welle

Apostas esportivas geram bilhões na Europa
Joédson Alves/Agência Brasil

A proliferação de apostas esportivas no Brasil chama a atenção do governo, que busca a criação de uma secretaria para o setor. O tema ganhou maior destaque após a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) das Apostas, que teve como estopim um grande esquema de manipulação de resultados envolvendo jogadores de alguns dos principais clubes do país.

A CPI das Apostas terminou nesta terça-feira (26/09) sem votar o seu relatório final, do deputado Felipe Carreras (PSB-PE). O documento foi protocolado, mas a maioria dos deputados do grupo designado para o tema optou por pedir vistas. A chegada do prazo final levou ao encerramento da comissão sem que o documento, que previa algumas mudanças no setor, fosse apreciado.

Uma das medidas propostas era limitar as apostas apenas em gols ou no resultado de um determinado jogo. No recente escândalo, boa parte das manipulações estavam relacionadas com outros aspectos de uma partida, como o número de cartões e a ocorrência de pênaltis.

A questão não é exclusiva do Brasil, e o tema levanta preocupações também em outros países. Na Bolívia, os campeonatos nacionais foram suspensos no começo de setembro por conta de um grande esquema de manipulação de resultados.

Um fator frequentemente mencionado é a proliferação de casas de apostas, assim como a publicidade destas empresas. Segundo estudo do Ibope Repucom, em 2022, o setor liderou os patrocínios nas camisas de times da elite do futebol no Brasil. Na América Latina, as casas detinham o segundo lugar nestes espaços. Além disso, competições, cotas de transmissões televisivas e espaços nos estádios passaram a contar com presença massiva deste setor nos últimos anos.

Por sua vez, o diretor de desenvolvimento de negócios do Ibope Repucom, Arthur Bernardo Neto, avalia que é de interesse de todos, principalmente por parte das casas, que haja emprenho máximo no combate a qualquer possibilidade de manipulação.

Ele lembra que "o episódio recente com jogadores brasileiros culminou em punições relevantes", destacando que alguns dos atletas chegaram a ser banidos do esporte. "Acreditamos que o peso de tais punições contribui para mitigar os efeitos negativos na imagem das casas de apostas e, somado à regulamentação, pode criar um ambiente mais favorável frente à opinião pública e aos apostadores", afirma Neto.

Nos últimos anos, especialistas e agentes do setor apontaram a América Latina como uma espécie de "gigante adormecido" para as casas de apostas. Em 2022, um estudo feito pela empresa SimilarWeb apontou o Brasil como o líder mundial em acesso a estas plataformas, com cerca de 25% do total mundial.

Preocupações com o vício

Neste cenário, a Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS), aponta, em relatório, que o mercado da região é considerado menos maduro do que na Europa, onde o jogo legal está disponível há muito mais tempo. Segundo a avaliação, que levou em conta os riscos para a saúde mental do crescimento das apostas, as empresas do setor veem grande parte do continente como não "excessivamente regulamentado", em contraste com alguns países europeus.

Para o psiquiatra da Associação Psicanalítica da Argentina (APA) Alberto Eduardo Álvarez, não há dúvidas de que na América Latina há menos controle. "Seja porque ainda não existem leis que regulem as apostas, ou não por não haver controle sobre aplicativos que não são legais", afirma. "Trata-se de um fenômeno social relativamente novo e as leis são sempre ditadas pela estrutura do sistema num momento posterior", lembra.

A questão levanta especial preocupação entre os mais jovens. O impacto das apostas no rendimento escolar já é algo temido por especialistas. De acordo com Álvarez, dificuldades na aprendizagem são um dos primeiros sintomas do problema, mas há cenários ainda piores, incluindo declínio do comportamento social e familiar.

Apresentando o problema

Adriano Monteiro é o criador do canal no Youtube "Apostador Falido", que virou uma referência ao abrir as portas para relatos de riscos e más experiências envolvendo as apostas. Em 2017, o técnico de eletrônica começou jogando com valores baixos, entre R$ 5 e R$ 10.

Aos poucos, a atividade foi avançando, e, Monteiro afirma que chegou a se dedicar quase integralmente ao tema. "Sempre há algum jogo. Eu acompanhava ainda grupos com dicas sobre onde apostar", conta. No entanto, em determinado momento, Monteiro diz que começou a perder com frequência.

"Eu tinha um grau de ansiedade horrível, e pensava em recuperar as perdas o tempo todo. Vivia um momento difícil no emprego, e as apostas eram um meio de fuga", afirma. Ele conta ainda que teve depressão, e que acabou vendendo bens para manter o vício, sempre com uma expectativa de que conseguiria recuperar as perdas.

"Quando cheguei no fundo do poço, comecei a acompanhar conteúdos estrangeiros, e vi que em países como Estados Unidos e Reino Unido, o problema é levado muito a sério", diz. "Eu não achava nada no Brasil, e então resolvi criar o canal para mostrar a verdade sobre o tema", conta Monteiro, que diz que desde julho de 2022 recebe em média um depoimento por dia de pessoas em dificuldade por conta do vício, muitas com prejuízos de dezenas de milhares de reais.

"Pessoas com ideias suicidas me procuram, e às vezes tenho até dificuldades de conciliar o trabalho com os conselhos que dou por falta de tempo", conta.

Promessa da renda extra

"Comecei a ouvir conhecidos conversando do tema, e encontrei youtubers que falavam de como era possível conseguir uma renda com as apostas", afirma Monteiro. "Uma vez, acertei 25 apostas sobre o número de escanteios das partidas. Neste momento, pensei que era possível fazer dinheiro com aquilo, e que até poderia ser possível viver daquilo", relata o youtuber.

Álvarez vê a questão como especialmente apelativa aos jovens, que acreditam que estão experimentando algo novo, e contam ainda com a promessa de ganhar dinheiro rápido e sem esforço.

Na visão de Monteiro, muitos acreditam que podem fazer uma renda extra com as apostas, incluindo algumas pessoas sem trabalho fixo. "Mas eles não entendem que aquilo pode destruir uma vida", afirma. "No caso do futebol, como a maioria das pessoas gosta e acha que entende, existe uma sensação de controle", aponta.

A ideia de muitos é resumida em "vou fazer um dinheiro, já que tenho um trabalho ruim", avalia. No entanto, "não temos um histórico sobre os riscos para alertar dos riscos", resume.

Monteiro acredita que o papel de influenciadores do setor leva muitos a acreditar que é possível viver das apostas, ou ao menos conseguir alguma renda extra. Atualmente, é possível encontrar uma série de cursos com dicas de como conseguir receitas seguras apostando. Além disso, muitos perfis exibem luxos e supostas conquistas que seriam fruto da atividade.

Para ele, tal cenário esconde a realidade. "É muito fácil mostrar que é possível ganhar dinheiro com apostas, e muitos fazem isso, mas os casos negativos não têm tanta repercussão", afirma.

Medidas para a publicidade

Em uma série de países, a pressão para que a publicidade do tema seja limitada teve efeitos. No caso da França, uma lei visando a atuação de influenciadores limita o espaço para as casas de apostas. Já no Reino Unido e na Espanha, os clubes das elites do futebol local optaram por não exibir mais patrocínios destas plataformas em suas camisas.

A Bélgica se notabilizou por uma das medidas mais duras no tema, e praticamente proibiu propagandas de apostas desde julho deste ano. "Isto é necessário para combater a normalização e banalização do jogo", afirmou o comunicado oficial do governo sobre a decisão. A Holanda seguiu caminho semelhante, e limitou os anúncios em meios como televisão e rádio.

Sobre o Brasil, Neto espera que, à medida que o mercado avance e o hábito de apostas se estabeleça entre os brasileiros, "diretrizes adicionais devam surgir, adequadas às necessidades pontuais da experiência brasileira com o setor", afirma. Atualmente, um projeto no Congresso visa limitar a ligação de celebridades e personalidades com os anúncios, além de restringir questões como o horário de exibição da publicidade no caso das televisões.

Autor: Matheus Gouvea de Andrade

Tópicos relacionados

Mais notícias

Utilizamos cookies essenciais e tecnologias semelhantes de acordo com a nossa Política de Privacidade e, ao continuar navegando, você concorda com estas condições.