A aliança de esquerda Nova Frente Popular (NFP) e o centro macronista agrupado na coligação Juntos surpreenderam neste domingo (07/07), no segundo turno das eleições legislativas francesas, ao conseguirem formar as maiores bancadas da Assembleia Nacional, a câmara dos deputados da França.
De quebra, os dois blocos ainda ficaram à frente da ultradireitista Reunião Nacional (RN), que havia recebido a maior porcentagem de votos no primeiro turno e que em pesquisas no início da semana parecia caminhar para formar a maior bancada da Assembleia.
Mas o resultado ainda levanta questões sobre como fica a governabilidade da França, já que nenhum partido ou coligação conseguiu formar maioria na Assembleia de 577 cadeiras.
Segundo os resultados finais, a NFP conquistou o maior número de cadeiras: 182. O Juntos, do presidente Emmanuel Macron, veio na sequência, com 168. Já a RN, o partido de Marine Le Pen, e uma facção aliada da direita conservadora conquistaram 143.
Assembleia fragmentada
No sistema semipresidencialista da França, o presidente e os membros do governo são eleitos separadamente. Um presidente depende de um primeiro-ministro indicado pela Assembleia Nacional para assegurar a governabilidade. Para obter a maioria absoluta e poder liderar um governo estável, um partido ou coligação precisa de 289 das 577 cadeiras na Assembleia Nacional.
O resultado deste domingo foi visto com alívio por militantes de esquerda e de centro, já que afastou decisivamente a possibilidade de a RN formar uma maioria e controlar o governo. No entanto, nem a NFP nem o Juntos de Macron conseguiram maioria.
A Assembleia Nacional já vive um impasse desde 2022, quando Macron perdeu sua maioria nas eleições legislativas daquele ano.
A convocação da eleição deste domingo foi feita pelo presidente justamente para tentar recuperar sua maioria – uma aposta fracassada, como se viu neste segundo turno, já que na realidade Macron até viu seu número de deputados diminuir em relação a 2022 e ainda se deparou com crescimento dos seus rivais de esquerda e ultradireita.
Ainda que a ultradireita tenha sido barrada, o aumento da fragmentação da Assembleia Nacional, com nenhum bloco tendo a maioria, ainda tem potencial de provocar uma paralisia semelhante a que vem marcando a casa desde 2022.
Neste caso, o Legislativo francês arrisca ficar travado por pelo menos um ano – prazo mínimo para a convocação de uma nova eleição.
O resultado da eleição legislativa, a princípio, não afeta diretamente a permanência de Macron na Presidência. Seu mandato vai até 2027.
Esquerda no comando do governo? E como?
Os números permitem prever que a esquerda, detentora agora da maior bancada, tentará indicar o novo primeiro-ministro.
O político de esquerda Jean-Luc Mélenchon, um dos líderes da NFP, afirmou neste domingo, após a divulgação das primeiras projeções, que sua aliança está "pronta para governar".
Restará saber como a NFP pretende organizar esse governo e quem será o indicado para o cargo de primeiro-ministro.
A NFP foi formada às pressas logo após Macron convocar a eleição legislativa, em 9 de junho. O grupo é formado pelos partidos A França Insubmissa (LFI), de esquerda radical; o tradicional Partido Socialista (PS); o Partido Comunista; e Os Verdes.
Mas, apesar do sucesso neste domingo, a NFP transpareceu várias divisões internas durante a campanha. Em contraste com outras coligações, ela não indicou em nenhum momento durante a campanha quem era seu candidato ao cargo de primeiro-ministro.
Além da incógnita sobre o nome, ainda restará saber se a NFP liderará um governo de minoria (como o que vinha sendo liderado pelo macronista Gabriel Attal) ou se será capaz de formar uma coalizão com deputados do Juntos de Macron. Somadas, as duas bancadas alcançariam os 289 deputados necessários para formar um governo estável.
Já um governo de esquerda de minoria arriscaria instabilidade, ficando sujeito a votos de não-confiança por parte de blocos rivais, que, em caso de sucesso, poderiam derrubar a administração.
Em ambos os casos, Macron estaria sujeito a uma “coabitação", quando o presidente e o primeiro-ministro são de blocos diferentes (ou mesmo rivais). Esse cenário já aconteceu três vezes (1986-1988, 1993-1995, e 1997-2002).
Resistência do macronismo a Mélenchon deve dificultar coalizão
Mas uma coalizão pode esbarrar na desconfiança mútua entre macronistas e setores da NFP ligados a Mélenchon, chefe da LFI, a principal força da aliança de esquerda.
Durante a campanha, Macron pintou Mélenchon e Marine Le Pen como "extremos" equivalentes, e o atual primeiro-ministro, o macronista Gabriel Attal, chegou a afirmar que seu partido nunca faria uma coalizão de governo com o líder da LFI e só procuraria negociar com aquilo que chamou de setores "republicanos" da esquerda.
Mélenchon é uma figura controversa até mesmo dentro da sua aliança. O Partido Socialista (PS), de centro-esquerda, a segunda maior força da legenda, chegou a romper com Mélenchon na legislatura anterior por causa da recusa da liderança da LFI de classificar o grupo palestino Hamas de organização terrorista.
Ainda na campanha, alguns dirigentes do PS chegaram a afirmar que, em caso de uma vitória da NFP, Mélenchon não seria o primeiro-ministro, numa tentativa de atrair eleitores moderados.
Macron, por sua vez, já chamou a LFI de "antissemita" e ainda acusou os deputados do partido de promoverem "desordem" na Assembleia Nacional.
Em relação à última eleição, em 2022, as forças dentro da aliança de esquerda também se alteraram. As projeções deste domingo indicam que a LFI ainda é o maior bloco dentro da NFP, e deve eleger mais de 80 deputados. Já o Partido Socialista, de centro-esquerda, deve eleger mais de 60. Os verdes, entre 34 e 35. Os comunistas, entre 9 e 10.
Em 2022, o PS havia elegido apenas 27 deputados.
Esses números indicam que também seria possível os macronistas ignorarem a LFI por completo e tentarem fechar acordos com o PS, os verdes e outros blocos na Assembleia (como os conservadores não aliados com a RN) e organizar outro tipo de coalizão ampla. Mas tal movimento deve gerar uma reação negativa da LFI e potencialmente de parte do eleitorado que votou na aliança de esquerda.
A esquerda pode indicar outro nome? E isso poderia funcionar?
Uma das soluções para superar diferenças pode passar pela indicação de um nome da esquerda que não seja Mélenchon para aplacar os macronistas.
Alguns dos nomes cotados são Manuel Bompard, protegido de Mélenchon e considerado mais moderado; Olivier Faure, líder do PS; e a ecologista Marine Tondelier. Outra possibilidade poderia ser o eurodeputado Raphaël Glucksmann, que encabeçou a lista da esquerda nas últimas eleições europeias.
Mas ainda assim a NFP e os macronistas manteriam divergências profundas em vários temas. A NFP, por exemplo, já disse que pretende reverter a impopular reforma da previdência, aprovada por decreto por Macron em 2023 e que foi um dos carros-chefes da sua agenda de reformas.
Ainda que isso seja superado, os blocos ainda assim estariam num terreno inédito. A França contemporânea não tem tradição nesse tipo de coalizão ampla, formada após as eleições, em contraste com países vizinhos, como a Alemanha.
Coalizões do tipo eram até comuns na França durante a instável 4° República (1946-1958), mas caíram em desuso após 1958, com uma nova Constituição e o fortalecimento do poder Executivo sob a presidência de Charles de Gaulle (1959-1969), quando grandes partidos passaram a ser capazes de reunir sozinhos maiorias para governar.
Negociações caso a caso? Ou governo de "especialistas"?
O atual primeiro-ministro, Gabriel Attal, chegou a sugerir na semana passada que, em vez de formar uma coalizão formal, os principais partidos da Assembleia poderiam potencialmente se unir para aprovar projetos caso a caso. Mas Macron já tentou essa estratégia, sem muito sucesso, desde que perdeu sua maioria em 2022, e acabou tendo que recorrer a decretos para passar projetos, como a reforma da previdência.
As regras constitucionais também não obrigam Macron a aceitar um primeiro-ministro da NFP e ele até pode tentar manter Attal. Na segunda-feira (08/07), o presidente pediu para que o premiê continue no cargo em caráter temporário.
Mas, tradicionalmente, o presidente acaba aceitando um nome oferecido pela maior bancada, já que o nome depende de aprovação da Assembleia Nacional.
Uma última alternativa, cogitada por analistas, seria o presidente indicar um "governo de especialistas", sem filiação partidária, que poderia tocar o dia a dia da Assembleia até a convocação de nova eleição. Nesse período, seria certo que nenhuma grande reforma seria aprovada.
Autor: Jean-Philip Struck