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A história atribulada de um dos primeiros filmes da Amazônia

Lançado em 1920, "Amazonas, o maior rio do mundo" reapareceu após quase 90 anos perdido. Filme foi exibido com sonorização ao vivo em Berlim em evento sobre preservação ambiental e economia sustentável da floresta.

Por Deutsche Welle

Uma janela rara para vislumbrar como era a natureza e a atividade humana na Amazônia na década de 1910 foi aberta nesta segunda-feira (16/09) em um cinema de Berlim, que apresentou um filme silencioso brasileiro redescoberto em 2023 após ter ficado quase 90 anos desaparecido.

Amazonas, o maior rio do mundo, dirigido por Silvino Santos e concluído em 1920, assemelha-se a um documentário da National Geographic muito antes de o canal existir, com imagens em preto e branco de pirarucus, peixes-boi e árvores típicas intercaladas com registros da extração de riquezas como madeira, borracha e castanha-do-pará, além de manifestações culturais de ribeirinhos e indígenas.

É também um retrato histórico da exploração da natureza pelo homem, que apresenta com olhar comercial a pujança dos recursos da região, financiado por empresários que desejavam vender os produtos da Amazônia pelo mundo quando o debate sobre preservação ambiental era incipiente.

O filme foi exibido no cinema Babylon, que faz exibições regulares de cinema silencioso musicado ao vivo em um órgão de teatro, o único do tipo instalado em seu local original na Alemanha, comandado pela russa Anna Vavilkina.

A sessão foi promovida pela embaixada do Brasil na Alemanha e pelo Research Institute for Sustainability (RIFS) de Potsdam, no contexto de um ciclo de debates e eventos sobre preservação da biodiversidade e economia sustentável na Amazônia.

Obra foi desviada, sumiu e reapareceu na República Tcheca

A história de Amazonas, o maior rio do mundo daria um filme à parte. Financiado por empresários da Associação Comercial de Manaus, os recém-concluídos rolos de 35 milímetros foram enviados à Europa para serem legendados e comercializados sob os cuidados de Propércio de Mello Saraiva – um professor de datilografia que era genro de um dos envolvidos na produção da obra.

Ao chegar à Europa, porém, Saraiva sumiu do radar sem dar satisfação aos produtores e passou a se apresentar como diretor do filme. Em 1921, a Gaumont, principal distribuidora de filmes na França, comprou a obra e começou a apresentá-la em cinemas europeus, sem os créditos ou o país de seu produtor, relata à DW o pesquisador Sávio Luís Stoco, que fez sua tese de doutorado sobre o filme e é professor da Faculdade de Artes Visuais da Universidade Federal do Pará (UFPA).

A obra foi exibida de maneira esparsa na Europa até 1934, quando desapareceu. Stoco conduziu a pesquisa a partir de fontes da época, entre jornais, revistas ilustradas com fotografias do filme e outros documentos oriundos de diversos países, e defendeu a tese em 2019 achando que nunca teria a oportunidade de assistir ao filme.

Até que, em fevereiro de 2023, Stoco recebeu um e-mail do diretor de um festival de cinema mudo na Itália relatando ter recebido uma obra da cinemateca da República Tcheca que parecia ser o filme citado em sua tese. A autenticidade foi confirmada, e hoje uma cópia digital está na Cinemateca Brasileira.

Primórdios da exploração da Amazônia

O filme soma 66 minutos, duração considerada longa para a época, foi gravado com técnicas e equipamentos sofisticados e tem sequências que podem causar indignação ao espectador preocupado com o meio ambiente.

Uma delas é a pesca do peixe-boi, hoje ameaçado de extinção. Enquanto um grupo de animais se alimenta de plantas subaquáticas num trecho raso do rio, são atingidos por zarpões e reagem nadando com força, puxando violentamente os pequenos barcos de pescadores – até que desistem e são arrastados para fora da água e despelados.

Há também imagens da caça de tartarugas, deixadas vivas com o casco para baixo enquanto esperam o golpe final, e da derrubada de árvores de mogno no meio da floresta e sua posterior transformação em tábuas.

Stoco avalia que o filme é uma "testemunha ocular" do extrativismo de então, quando ainda não havia leis para regular essas atividades, e "comprometido com as elites amazônicas da época", mas é rico para uma "leitura a contrapelo" e cuja exibição hoje contribui para sensibilizar o público.

A obra também mostra detalhes da exploração da castanha-do-pará, desde a coleta até a exportação de toneladas a granel em navios, da colheita de algodão e sua venda sob a forma de compactada, e da pescaria e fracionamento do pirarucu, entre outros processos comerciais.

"Ele fotografa a extração de forma a destacar avolumamento dos produtos, pilhas de peles de animais, pilhas enormes de madeira, fileiras de peixes-boi. Isso na época era para mostrar a pujança, mas hoje mostra uma história da degradação ambiental", diz o pesquisador.

Registro de aspectos culturais

Nascido em Portugal e formado em fotografia em Paris, Santos considerava Amazonas, o maior rio do mundo o principal projeto de sua produtora fundada em Manaus em 1917, que acabou indo à falência após o sumiço do filme na Europa.

Se apresentar os processos comerciais era necessário para atender seus financiadores, o cineasta também encontrou espaço para fazer registros artísticos e culturais da Amazônia.

O filme mostra, por exemplo, gravuras pré-coloniais em pedras na beira de rios, imagens de cerimônias de danças indígenas e a produção artesanal das cuias de Santarém, reconhecidas como patrimônio cultural do Brasil pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) em 2015.

Também estão lá cenas da cultura alimentar da época, como a produção de farinha de tapioca e o comércio no Mercado Ver-o-Peso em Belém do Pará.

"O principal era esmiuçar o processo de produção de produtos, mas ele inclui também aspectos socioculturais", diz Stoco. "Ele mistura vários gêneros: filmes de animais, filmes de viagem, filmes industriais que detalham processos de fabricação, filmes de humor. E inclui subtemas identitários da sociedade da época."

Após o desaparecimento da obra, Santos continuou filmando com o apoio de um dos maiores empresários então ativos na Amazônia, o português Joaquim Gonçalves de Araújo, e estabeleceu seu nome na cinematografia nacional. Em 1922, ele lançou o premiado No Paiz das Amazonas, que também retrata atividades extrativistas e comerciais e ficou por cinco meses em cartaz no Rio de Janeiro.

"Filme mostra que as coisas não mudaram tanto"

A apresentação em Berlim de Amazonas, o maior rio do mundo integra uma mostra de três filmes sobre a floresta, sob a curadoria da cineasta Mariana Lacerda, da rede de fellows do RIFS, ao lado dos pesquisadores Maria Cecilia Oliveira e Bernardo Jurema, do mesmo instituto.

Lacerda afirma à DW que o filme de Santos foi feito sob a "perspectiva do colonizador, da exploração, do 'pra quê serve'", e que hoje nos ajuda a entender a história do ambientalismo e do Antropoceno. "Mas a sensação é que as coisas não mudaram tanto – mudaram as formas, mas o gesto da pilhagem continua o mesmo", diz.

"Mostra também esse entendimento da separação entre ser humano e natureza. Para os ameríndios essa separação não existe, mas, para a gente, infelizmente sim, e o filme escancara isso", afirma.

Também integram a mostra no Babylon Iracema - uma transa amazônica (1974, dirigido por Jorge Bodanzky e Orlando Senna) e o documentário Serras da Desordem (2006, dirigido por Andrea Tonacci).

"Amazonas, o maior rio do mundo não nos traz uma abordagem crítica, é a luz do tempo que nos oferece isso. Já os outros dois filmes, sim. Iracema [proibido pela ditadura em 1974] foi feito num momento em que os militares falavam que na Amazônia existia 'um imenso vazio demográfico', e por meio da abertura de uma estrada entendemos a violência que se instala na região através da fala desenvolvimentista", diz Lacerda.

"Já o Serras da Desordem, que conta a história de um indígena que sobreviveu a um massacre de sua etnia e chega até Brasília, é situado no passado, mas anuncia um futuro – que hoje fornece uma ideia bastante clara de presente."

Autor: Bruno Lupion

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