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Ele foi jogado em alto-mar para morrer; resgatado, tentou ser jogador de futebol

Conheça a história de Gofu Felix Corleoma, que sobreviveu a 12 horas em alto-mar amarrado a um tonel antes de tentar a carreira nos gramados do RN

Por Emanuel Colombari

Ele foi jogado em alto-mar para morrer; resgatado, tentou ser jogador de futebol
Arte por Victor Buranello/Band

A história de Gofu Felix Corleoma é semelhante à de muita gente no Brasil. Muito religioso, tentou a vida no futebol. Mas a falta de sucesso no esporte levou a uma outra vida, mais bem modesta.

Só que o roteiro simples não resiste a uma pesquisa mais aprofundada.

Nascido na Nigéria, Gofu rodou por vários países na África durante a juventude. No fim de 2000, embarcou escondido em um navio cargueiro, pensando que poderia ir para os Estados Unidos ou para o Canadá. Ali, foi descoberto pela tripulação, que jogou ao mar o clandestino amarrado a um tonel.

Gofu só não morreu porque, após horas à deriva, foi encontrado por pescadores no litoral do Rio Grande do Norte. Resgatado, foi viver em Natal, onde passou por avaliações em dois times de futebol. Mas optou por abrir mão do sonho de se tornar jogador.

No Brasil, o nigeriano foi acolhido pela Igreja Católica. Até hoje chama Dom Heitor de Araújo Sales, arcebispo emérito de Natal, de “meu pai”.

“Ele tem uma gratidão muito grande”, conta Dom Heitor, que descreve Gofu como uma pessoa de “sentimentos muito nobres”. “Para ele, se não fosse eu, ele teria morrido.”

Vários caminhos até Johanesburgo

A trajetória de Gofu antes de chegar ao Brasil é bastante sinuosa e incerta.

Nascido na Nigéria, deixou a família e passou por vários países ainda nos primeiros anos de vida: foi para o Quênia, depois para a Tanzânia, para Moçambique e para o Zimbábue. Na adolescência, chegou à África do Sul.

No entanto, segundo informações jornalísticas da época do resgate, Gofu Felix Corleoma nasceu em Freetown, capital de Serra Leoa, no dia 26 de novembro de 1983. O pai teria morrido em um acidente de caminhão quando ele ainda tinha três anos. O menino então cruzou a fronteira e foi levado à Libéria pela mãe, que o deixou aos cuidados de uma amiga.

Mãe e filho nunca mais teriam se visto.

Aos sete, sem ter o que comer na casa da amiga da mãe, Gofu fugiu. Foi para a Guiné-Bissau, sempre correndo o risco de ser deportado de volta para Serra Leoa caso fosse descoberto pelas autoridades. Aos dez anos, sem documentos, escondeu-se em um barco pesqueiro e foi parar na África do Sul.

A data e o local de nascimento constam também nos documentos do Ministério da Justiça referentes ao processo de naturalização dele como cidadão brasileiro, de 2019. Em janeiro de 2020, a revista A Ordem, da Arquidiocese de Natal, informou que ele havia deixado familiares para trás em suas mudanças pela África para buscar o sonho de ser jogador de futebol e ajudar a família.

Na África do Sul, onde as versões se encontram, Gofu foi morar nas ruas de Johanesburgo. “Não foi nada fácil. Sem dinheiro nenhum, sem apoio nenhum. Graças a Deus, cheguei no sul da África com a ajuda de Deus. Não tinha nada para começar a vida. Cheguei em Johanesburgo à meia-noite, eu não esqueço. Acho que foi um domingo. Um africano da Nigéria me deu apoio, e isso eu não posso negar”, descreve.

Morando em uma região violenta da cidade sul-africana, Gofu tinha que ficar acordado até de madrugada na nova casa para observar a movimentação da polícia. “Não tinha escolha”, alega.

Cidadania falsa

Gofu tinha o sonho adormecido de ser jogador de futebol. A realidade sul-africana ofereceu a ele a alternativa de lavar pratos em restaurantes locais para sobreviver. Depois, começou a vender doces como ambulante.

Sem ter documentos pessoais ou licença para trabalhar no país, Gofu foi descoberto pelas autoridades locais. Levado a uma delegacia, ficou detido por dois meses no que descreveu como uma espécie de calabouço. Temia ser expulso do país.

No cárcere, uma delegada pressionava para saber se Gofu tinha envolvimento com drogas. Ele negou.

“Você vai ser deportado. Não hoje. Na próxima deportação, amanhã. Eu vou fazer todo o documento”, sentenciava ela.

Gofu se defendia. “Eu sou nigeriano, como a senhora ouviu. Mas o que eu estava fazendo para sobreviver? Eu não sou vendedor de droga. Eu tenho mãe e pai, tenho irmã, tenho família. Estou procurando um meio de sobreviver. Eu saí de lá para ajudar o sofrimento da minha família”, afirmava ele, conforme reproduziu à reportagem.

Convencida da inocência, a delegada liberou Gofu com documentos pessoais falsos - como cidadão de Serra Leoa, endossando a versão apresentada na época da chegada ao Brasil.

“Ela tirou um papel que ela já fez, digital, com nome e país, tudo. ‘Esse nome, Gofu Felix Corleoma, vai ser seu nome como cidadão de Serra Leoa’. Eu disse: ‘Como?’. Ela disse: ‘Esse documento, você não pode rasgar’.”

Gofu nem voltou para a cela. Deixou a delegacia e foi para as ruas de Johanesburgo, agradecendo a Deus. O destino seria Durban.

Dois litros de água e um punhado de açúcar

Livre das autoridades de Johanesburgo, Gofu estava decidido a ir embora da África do Sul.

A melhor alternativa era Durban, o maior terminal de embarque marítimo de cargas na África. Para vencer os 580 km que separavam as duas cidades, contou com uma passagem de trem comprada por um amigo.

“É lá que tem porto. É lá que tem navio.”

“O que você vai fazer no porto?”

“Eu não vou atrás de droga. Eu estou indo para lá, o caminho que Deus me mostrou. O voto que eu fiz a Deus. Deus me tirou daquele lugar. Assim foi cumprido e eu tenho que pagar.”

O amigo ainda argumentou contra a viagem ao litoral, mas Gofu insistiu e pediu orações ao amigo. Mais do que as orações, ganhou os 80 rands da passagem e um puxão de orelha.

“Gofu, você é doido.”

Na noite de 16 de dezembro de 2000, no cais, Gofu avistou um cargueiro ancorado, que acreditava que partiria para os Estados Unidos. Aproveitando uma brecha na segurança, subiu por cordas até o navio. Outros três amigos de ocasião também subiram. Além das roupas do corpo, Gofu tinha apenas uma garrafa com dois litros de água e uma pequena quantidade de açúcar que levou no bolso.

“A primeira porta que eu vi, eu abri”, diz. “Assim que eu entrei, pensei: ‘Onde eu vou me esconder? Deus, me ajude’.”

Gofu se cobriu com cordas no porão do navio para se esconder. Menos de 20 minutos depois, a embarcação deu sinal de partida. Com o motor ligado, começou a navegar. 

“Amigo, eu fiquei tão grato a Deus, uma alegria em mim… Naquele dia, eu disse: ‘Nunca mais eu volto para este país’.”

A viagem no porão duraria sete dias, interrompidos apenas por breves momentos em que Gofu conseguia levantar para se alongar. Até que precisou encarar a tripulação. 

Pena de morte

Passados sete dias, a água com açúcar já havia acabado. Debilitado e faminto, Gofu deixou o esconderijo. Em busca de ajuda, encontrou um tripulante, a quem recorreu.

“Um soldador grego me ouviu e parou. Ele disse para eu não me mexer. Assim, eu fiquei lá, congelado, sem forças”, descreve.

O soldador começou a fazer perguntas. Quis saber onde Gofu estava escondido, se tinha alimentação, onde havia embarcado, se tinha mais gente com ele.

Na conversa, Gofu descobriu que o soldador era o único estrangeiro de uma tripulação composta por chineses. E que teria que ser entregue a eles, que decidiram o que fazer com o clandestino encontrado no porão.

“Infelizmente, vou ter que dar você ao capitão, e é o capitão quem vai decidir”, disse o grego, segundo Gofu. “Não se esqueça, não tenha medo, não vai acontecer nada.”

Gofu foi levado à tripulação, e respondeu a diversas perguntas do capitão em inglês. Em seguida, o responsável pela embarcação falou em chinês com os subordinados e levou o clandestino a uma espécie de cela.

Capturado, Gofu passou a ser alimentado periodicamente, recebendo comida quente e frutas entregues pelo soldador grego nos próximos dias. Tentou negociar com ele uma fuga, mas o tripulante europeu alegou que só os colegas chineses tinham a chave do espaço.

Até que, na madrugada do dia 31 de dezembro de 2000, foi acordado por um tripulante, que arranhava poucas palavras em inglês.

“Come, come. Captain. Speak.”

Gofu então foi levado à popa do navio para um julgamento que já tinha veredito. O capitão informou que os outros clandestinos haviam sido descobertos e foram obrigados a se jogar no mar. O destino de Gofu seria o mesmo.

“Por que você não quer pular fora? Seus amigos pularam, por que você não quer?”, perguntou o capitão.

“Capitão, pelo amor de Deus, eu não estou aqui pra fazer mal a nenhum de vocês. Eu só estou procurando um canto para sobreviver.”

A tripulação tentou jogar o clandestino à força. Gofu resistiu, agarrando-se a grades do convés. O capitão então perguntou o que ele queria.

Gofu então pediu um tambor e uma corda. Com ela amarrada ao braço e ao recipiente, poderia sobreviver por mais tempo flutuando, na expectativa de que pudesse ser resgatado ou que pudesse encontrar terra firme.

O capitão então amarrou Gofu pela cintura ao tambor. Ciente de que teria menos chances de sobreviver daquela maneira, pediu também um colete salva-vidas. Recebeu, mas a tripulação arrancou do equipamento a identificação da embarcação e o material que recheava a vestimenta e assegurava a flutuação.

“Para eu afundar logo”, resume Gofu, que ainda se emociona e chora muito ao relembrar as cenas daquela madrugada de 31 de dezembro.

Gofu não queria pular porque não sabia nadar. Mas foi içado pela tripulação e lançado ao mar, amarrado ao tonel para morrer. 

À espera de um anjo

Aos poucos, Gofu viu o navio se afastar e desaparecer. A cabeça fora d’água garantia a sobrevivência por período indeterminado.

A água batia forte. Gofu chorava e rezava. De tanto mexer braços e pernas para tentar se manter fora d’água, passou a ter dificuldades para se movimentar. Engolia muita água.

“Até hoje eu me pergunto por que eu mijo tanto”, diz. “Eu comecei a não ter mais forças.”

Com o passar das horas, peixes pequenos começaram a morder a pele de Gofu. Enquanto o dia amanhecia, ele olhava para o céu esperando por uma salvação.

“Agora eu começo pedindo a Deus, olho para o céu. Não tem ninguém”, descreve. “Quem vai me socorrer? Diga. Eu creio em Deus, e acho que Deus aumentou a fé em mim naquele dia. Eu olho para o céu e digo: ‘Deus vai me enviar um anjo para eu escapar’. Vai ser um avião, um avião vai passar e perceber. O avião passou e nada.”

A salvação poderia vir do mar. “Por que os pescadores estão parados? É Ano Novo.”

As horas passam. Sob o sol forte, Gofu vai perdendo as forças. E conversa com Deus.

“É melhor eu morrer logo. Onde vai estar minha alma? Coloque em um bom lugar. Quero tirar minha própria vida.”

Gofu tentou tirar o colete salva-vidas, mas não conseguiu - Deus não permitiu, acredita. 

Até que, 12 horas depois de ser lançado ao mar, o anjo esperado finalmente chega.

Um tonel no mar

A pescaria de Alcides Barros Sobrinho na tarde daquele 31 de dezembro de 2000 parecia pouco promissora.

Na tarde do último dia do ano, o pescador discutia no barco com o pai, Francisco, e o irmão, Alcimar, se já voltariam a terra firme ou se continuariam a insistir por mais algum tempo antes que o dia escurecesse. Para piorar, a embarcação havia quebrado duas vezes, e a volta à terra firme parecia a opção mais segura.

Alcides queria voltar para participar de um jogo de futebol em Tibau do Sul. Alcimar queria ficar. Sem uma decisão definida, Alcides deixou os familiares, levantou-se da mesa e foi ao teto da embarcação para almoçar.

De lá, avistou um tonel flutuando na água.

Alcides achou que seria uma boa ideia levar o recipiente para armazenar água. O pai não gostou da ideia. Iniciou-se mais uma troca de argumentos.

“Deixa para lá, meu filho. Esses estrangeiros jogam essas coisas no meio do mar, deixa para lá”, disse Francisco, que reforçou: “Agora são 15h30, você não quer jogar? Dá para jogar o segundo tempo”.

“Pai, eu quero esse tambor para mim”, insistiu Alcides.

“Como você não se importa em perder o jogo, eu vou pegar”, concordou Francisco, que arrumou os problemas do barco para atender ao pedido do filho.

O barco foi em direção ao tonel, que poderia ser útil. E só quando se aproximou foi possível ver: amarrado ao recipiente metálico, havia um jovem negro, já sem forças. 

“Pai, tem gente amarrada no tambor!”

Àquela altura, o náufrago Gofu já havia passado quase 12 horas em alto mar amarrado ao tonel. Na água, o atrito com as cordas machucava a pele.

Alcides olhou para o garoto amarrado ao tonel e pediu calma. “Ele disse: ‘Ele está há muito tempo dentro da água, se a gente for puxar, o couro dele vai cair’. Melhor ele ficar dentro do mar e a gente dar apoio pelo pé; outro segura para colocar ele no barco’”, descreve Gofu.

Assim foi feito. Gofu foi colocado dentro do barco. Não conseguia ficar em pé. Feliz, recebeu arroz e peixe para se alimentar. Sem saber em que lugar do mundo estava, agradeceu como conseguiu.

Já em Tibau do Sul, foi levado à família dos pescadores. Até que um deles conseguiu informar ao náufrago:

“Eu tenho que entregar você para as autoridades."

Gofu foi levado à Polícia Federal, que entrou em contato com a Arquidiocese de Natal. Na cidade, foi acolhido pelo arcebispo da capital potiguar, Dom Heitor de Araújo Sales.

Gofu entra em campo

Gofu foi levado para Natal e passou três meses morando na Polícia Federal.

A instituição foi então procurada por Dom Heitor, que havia visto a história na TV e decidiu tentar a guarda do náufrago. O jovem ficou sob responsabilidade da Arquidiocese de Natal, que conseguiu para Gofu uma casa para morar na capital potiguar por cerca de dois meses.

Foi quando o futebol apareceu de novo na vida de Gofu.

Representantes do América entraram em contato com um advogado da arquidiocese, que conversou com o jovem. A ideia era oferecer a ele um período de testes - caso não fosse possível seguir carreira como jogador, a promessa seria conseguir um emprego no clube.

“Assim, me mudei para lá. Comecei morando lá no CT do América Futebol Clube, aqui em Natal”, explicou Gofu.

Mas os planos não evoluíram. Gofu passou três meses treinando, sem jogar. Resolveu deixar a equipe.

“Eu que decidi ir embora. Um dia, eu desapareci. Desapareci e fui para a mesma casa que a arquidiocese conseguiu para mim.”

Numa tarde de sábado, de volta ao antigo lar, Gofu não encontrou a idosa que havia lhe abrigado no endereço. E parecia novamente destinado a não ter onde morar.

“Quando eu cheguei lá, vi o portão fechado, cheio de mato. Não tinha ninguém. Chamei, chamei, ninguém atendeu. Eu disse: ‘Não volto mais lá para o América, é uma decisão minha’. E falei: ‘Eu vou morar na rua novamente, como eu morava na África do Sul’.”

No fim da tarde, um vizinho chegou de carro e encontrou Gofu na calçada. Foi ele quem contou ao serra-leonês que a idosa moradora da casa havia sido levada para o hospital, onde estava à beira da morte.

“Ninguém mora mais aí. a casa está fechada. Vai embora logo, aqui não é bom ficar sozinho na rua”, disse o vizinho, que entrou com o carro da garagem de casa e orientou que Gofu voltasse ao América.

Ele não queria.

O vizinho então se ofereceu para acolher Gofu naquele fim de semana. Na segunda-feira, porém, teria que acionar a Polícia Federal, para que novamente se definisse o futuro do jovem.

A primeira oportunidade de Gofu no futebol brasileiro estava definitivamente encerrada. Mas ele garante que não teve motivos para reclamar do período no América de Natal.

“Foi ótimo. Minha experiência foi muito boa. Não tenho nada a questionar - nem o treinador, nem o preparador físico”, afirmou. “Eu treinei. Tudo que mandaram fazer, eu fiz. Mas eu não tinha paciência para esperar por minha oportunidade. Então, decidi sair.”

A segunda chance

Fora do América de Natal, Gofu foi morar em Parnamirim, cidade vizinha à capital potiguar, aos cuidados do padre Antônio Murilo de Paiva. Ainda em 2001, o futebol deu uma segunda oportunidade.

Gofu jogava uma pelada quando foi visto pelo pastor Sandoval Gonçalves, que trabalharia como treinador no Alecrim naquele ano. A convite de Sandoval, o jovem foi atuar nas categorias de base do tradicional clube natalense.

“Ele me chamou: ‘Gofu, eu vou ser treinador do Alecrim aqui em Natal. Eu estou chamando você para fazer parte da equipe lá. Quem sabe você sobe para o profissional?’”, descreve.

O próprio Pastor Sandoval confirma a história. “Era um bom jogador, de muita força, personalidade”, contou à reportagem o ex-treinador, que decidiu chamar Gofu “também pelo fato de ajudar na formação do caráter”.

Gofu conversou com padre Murilo e decidiu aceitar o convite. Pelo time júnior do Alecrim, fez as primeiras partidas. Mas decidiu novamente sair quando Sandoval - a quem chama de “meu grande professor” - foi dispensado pelo clube.

“Quando ele foi mandado embora, ele disse para mim: ‘Eu estou indo embora, mas você tem caminho pela frente, não se preocupe. Só foque nos treinos. Você vai para frente’ Eu disse: ‘Professor, se você vai embora, eu também vou’”, conta Gofu.

Por lealdade, o jovem jogador não voltou mais ao clube. Deixou uma imagem positiva.

“Gofu era muito veloz, tinha intensidade muito grande. A parte técnica não era bem apurada, mas aos poucos foi se desenvolvendo. E a gente sempre se deu bem. Até hoje a gente tem a nossa amizade, graças a Deus. Eu me senti muito honrado de ter aquele cara do meu lado”, conta o ex-meia Neto, que foi companheiro de Gofu no time.

Em 2009, Pastor Gonçalves se tornou um dos fundadores do Visão Celeste Futebol Clube, time de Parnamirim que passou a disputar competições oficiais a partir de 2010. Em 2019, o Visão Celeste se tornou o primeiro clube da história do futebol potiguar a chegar às oitavas de final da Copa São Paulo de futebol júnior.

Gofu ainda foi avaliado no São Gonçalo FC, de São Gonçalo do Amarante (RN), mas não chegou a jogar. A partir de 2002, afastado dos gramados, foi trabalhar - primeiro em uma sapataria, depois como vigia noturno de um prédio residencial.

Anos depois, Pastor Sandoval ainda tentou levar o agora ex-jogador para o novo clube, mas não conseguiu. “Depois ainda tentei entrar em contato com ele. Por não saber onde ele morava, só dois anos depois que falei com ele. Já não quis mais jogar”, explicou. “Estava trabalhando. Casou e precisava de trabalhar.”

Reconstituição

Em 2001, o Ministério Público Federal conduziu uma apuração do caso.

A partir da informação da Capitania dos Portos do Maranhão de que o navio Aldebaran II atracaria em julho no Porto de Itaqui, as autoridades investigavam a suspeita de que o capitão da embarcação de bandeira panamenha teria sido o responsável por atirar Gofu ao mar. Segundo o MPF, a vítima reconheceu a embarcação e a tripulação em depoimento.

Foram identificados:

  • Yao Ren Fu, comandante do navio
  • Yang Yu Bin, subcomandante do navio
  • Ke Li Xun, marinheiro mercante
  • Liu Zu Hui, marinheiro mercante
  • Li Xi Yang, timoneiro-chefe
  • Ji Jia You, timoneiro
  • Wang Zao Zhong, timoneiro
  • Zhang Yong An, cozinheiro
  • Li Jia Jiu, serviços gerais

Os primeiros tripulantes ouvidos negaram os fatos. No entanto, o depoimento do cozinheiro Zhang Yong An confirmou que Gofu foi encontrado no navio e atirado em alto mar. A partir daí, a versão foi confirmada pelo restante da tripulação.

Em casos como o relatado, a orientação para tripulações de navios é entregar passageiros clandestinos no primeiro porto de atraque. Ao MPF, o comandante Yao Ren Fu informou que conhecia a norma. A investigação não conseguiu confirmar que outras pessoas também embarcaram clandestinamente em Durban.

Descoberto, Gofu foi interrogado pelo próprio Yao Ren Fu, que determinou a prisão dentro do navio, sem castigos físicos e com três refeições diárias. Coube ao marinheiro Ke Li Xun acordá-lo na madrugada de 31 de dezembro para o veredito do julgamento. Ao timoneiro-chefe Li Xi Yang, coube a tarefa de acordar os demais tripulantes. 

Partiu do subcomandante Yang Yu Bin a decisão de jogar Gofu ao mar, o que era de conhecimento do comandante - que, entre outras coisas, determinou que as inscrições no colete salva-vidas fossem apagadas para dificultar qualquer possível identificação. As ordens foram acatadas por todos. “Um navio é igual a um exército, todos são obrigados a cumprir ordens superiores”, alegou o timoneiro Wang Zao Zhong.

Yao Ren Fu alegou que conduziu o navio a uma distância de meia milha da costa para desembarcar Gofu, que teria que nadar até a praia. O MPF classificou a hipótese como “inverossímil”. “Fica perceptível que a intenção do agente é, consciente ou inconscientemente, descaracterizar o dolo eventual, minimizando os riscos do resultado morte”, relata a denúncia oferecida na época.

O clandestino foi içado por uma corda e lançado ao mar. O livro de bordo apreendido pelas autoridades registrava que o navio passara além dos limites do mar territorial brasileiro. Segundo o MPF, “embora a ação tenha inequivocamente ocorrido em águas internacionais”, a morte de Gofu “deveria potencialmente ter-se produzido já no território nacional”.

A denúncia oferecida pelo MPF informava também que “foi possível estabelecer como estimativa que a vítima foi obrigada a descer do navio Aldebaran II quando se encontrava a 55,5 km da costa do Rio Grande do Norte, ou seja, fora do mar territorial brasileiro, ponto a partir do qual foi levada pelas correntes marinhas até ser encontrada pelos pescadores”.

Também segundo o texto, “é possível determinar que a vítima foi encontrada entre 9 e 18 km da costa, lembrando-se que a essa distância é certo que estava, no momento do salvamento, dentro do mar territorial brasileiro”.

Por fim, o documento assinado pelo procurador da República Sergei Medeiros Araújo em 7 de agosto de 2021 informava que Yao Ren Fu foi preso preventivamente no Maranhão, assim como outros seis tripulantes. A acusação: tentativa de homicídio com dolo eventual. Yang Yu Bin era o único cujo paradeiro era incerto.

A denúncia foi encaminhada ao Ministério das Relações Exteriores, que deveria repassá-la à Embaixada da China no Brasil.

Depois das chuteiras

Se o futebol poderia ser a porta de entrada para uma vida de luxos, a vida do Gofu no Rio Grande do Norte ganhou ares modestos.

Sem a carreira nos gramados, Gofu passou a se ocupar em ofícios menos badalados. Trabalhou em uma sapataria e vigia noturno. Mais recentemente, foi contratado por uma empresa que prestava serviços à Prefeitura de Parnamirim e foi alocado na vaga de porteiro de escola. Começou a frequentar os cultos da Congregação Cristã do Brasil.

Na Nigéria, conseguiu contatos com os familiares e mantém conversas até hoje. Em 2017, Gofu entrou com um pedido para se naturalizar brasileiro. O pedido foi aceito em julho de 2019. Nos anos seguintes, enfrentou graves problemas de saúde.

“Em 2021, eu não andava, eu não falava. Eu engatinhava dentro de casa. Você não sabe. Em 2022, eu não conseguia ficar em pé. Meu amigo veio me ver aqui e começou a chorar”, conta Gofu, que afirma ter sido diagnosticado com uma suspeita de síndrome de Guillain-Barré, uma complicação de infecções que deixam os pacientes mais graves sem movimentos. “Até hoje, o médico não descobriu o que eu tenho.” 

Casou-se, teve duas filhas e se separou. A casa onde morava com a família foi vendida à Arquidiocese de Natal, que disponibilizou o imóvel para que Gofu continuasse morando no local - teria apenas que custear as contas do endereço.

A reportagem procurou o desfecho da denúncia oferecida pela Procuradoria da República no Maranhão em 2001. O Ministério das Relações Exteriores indicou o contato com o Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional, do Ministério da Justiça, que poderia ter registros do caso. O departamento pediu contato pela assessoria de imprensa da pasta, que não respondeu.

Também foram procurados por e-mail o Tribunal Regional Federal da 1ª Região (que abrange juridicamente o Maranhão, onde a embarcação foi interceptada em 2001) e a Embaixada da China no Brasil. Não houve respostas.

Em 2024, após 25 anos, vai viajar à Nigéria para rever a família. E, mesmo com uma trajetória tão dramática, vive com o coração leve.

“Eu tenho o maior desejo de voltar à África do Sul para lembrar meu passado”, diz. “Os chineses que me pegaram: indenização? Eu só pediria a eles para não fazer aquilo a ninguém. Eu tenho desejo de ir à China e procurar essa tripulação, esse capitão. Para que eu converse com eles pessoalmente.”

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