Com imagens espetaculares, o Canal 100 mostrou a construção de uma nova estética no modo de filmar o futebol, aproximando-a da verdadeira arte. São os originais desse valioso material que a Cinemateca Brasileira vem recuperando desde 2011, em um projeto orçado em R$ 22 milhões para recuperar, catalogar e digitalizar o acervo que contém mais de 20 mil noticiários distribuídos em 8.044 latas de filme em 35mm.
"Captamos 40% desse total, mas estamos negociando com outras empresas para concluir o trabalho em 2026", comenta Maria Dora Mourão, diretora geral da Cinemateca, que já conta com o patrocínio do Instituto Cultural Vale, da Shell e do Itaú, por meio da Lei de Incentivo à Cultura.
"Inicialmente, planejávamos terminar o trabalho em 2014, para a Copa do Mundo no Brasil. Agora, pensamos em daqui a dois anos para aproveitar o Mundial que será realizado nos Estados Unidos, Canadá e no México", afirma Gabriela Queiroz, diretora técnica da entidade.
Até o momento, apenas uma pequena amostra dessa coleção foi digitalizada, mas o objetivo é a preservação integral de um conteúdo que contém cenas históricas, como o Fla-Flu de dezembro 1963, que decidiu o Campeonato Carioca (o empate sem gols deu o título ao Flamengo): foi o jogo de maior público entre clubes na história do futebol, com 194.603 torcedores no Maracanã (177.020 pagantes).
Criado em 1959 por um flamenguista doente, Carlos Niemeyer (1920-1999), o Canal 100 adotou um formato de cinejornal que já era utilizado por americanos e europeus, mas tornou-se essencialmente brasileiro ao eleger o futebol como seu carro-chefe. Assim, ainda que retratasse momentos decisivos da história contemporânea brasileira (desde a inauguração de Brasília até os comícios pelas Diretas, passando por shows de Elis Regina e de tropicalistas, bossa-novistas e ainda as modificações arquitetônicas do Rio), o que tornava o Canal 100 em um produto único era a forma como exibia uma partida de futebol.
"O Canal 100 utilizava um tipo de lente que, apesar de pesadíssima e de ser carregada nos ombros, era capaz de mostrar algo que ninguém que esteve naquele estádio tinha observado", comenta o cineasta Ugo Giorgetti, diretor dos filmes Boleiros - Era uma Vez o Futebol... e Boleiros 2 - Vencedores e Vencidos. "Um lance que não parecia empolgante era trabalhado com uma bem-sucedida montagem e sonoplastia, tornando as tomadas muito mais interessantes."
"Era essa a intenção de Niemeyer, que não queria aborrecer o espectador do cinema, especialmente aquele que havia assistido à partida no estádio." Assim, inovou ao filmar os lances em câmera lenta, o que permitia observar detalhes inacessíveis mesmo para quem tinha visto a reprise do jogo na televisão. Para isso, ele adquiriu câmeras teleobjetivas de 400 a 600 mm, aparelhagem que nenhuma TV de então dispunha. Niemeyer (que era primo do famoso arquiteto) contou ainda com uma talentosa equipe de cinegrafistas, formada por Francisco Torturra, Liercy de Oliveira e João G. Rocha. A princípio, o grupo filmava os principais jogos do campeonato carioca, no início dos anos 1960. Em pouco tempo, já acompanhava também a seleção brasileira.
Foi o que aconteceu na Copa da Inglaterra, em 1966. E, diante da atuação pífia do Brasil contra Portugal, cuja vitória por 3 a 1 desclassificou a equipe comandada por Vicente Feola ainda na fase classificatória, as imagens do Canal 100 traduziam a ira do torcedor nacional, com a seguinte narração de Cid Moreira, locutor oficial do cinejornal: "A seleção estava tonta, a defesa, em pânico, e o ataque, inoperante".
Mesmo assim, Niemeyer confiou na seleção que disputaria a Copa de 1970 e, endividado, rumou com sua equipe para o México. A sensacional conquista do tricampeonato permitiu que ele saldasse as contas e já apostasse em imagens coloridas.
Ainda que acompanhasse ídolos do esporte como o piloto Emerson Fittipaldi e a tenista Maria Esther Bueno, o futebol interessava mais a Niemeyer, cujo templo sagrado era o Maracanã, onde distribuía sua equipe em pontos estratégicos. O objetivo era filmar de ângulos novos para transmitir a emoção das partidas. Posicionava duas câmeras no fosso do estádio, atrás dos gols, e outra nas cadeiras especiais. O técnico de som ficava na arquibancada. Os cinegrafistas caprichavam no close dos jogadores e em suas pernas, pois Niemeyer sabia que o futebol é um drama disfarçado de esporte e as expressões faciais dos atletas tinham tanta importância quanto seus dribles.
"A grande intuição de Niemeyer foi entender que o drama da partida não estava só no campo, mas também no espectador", observa o cineasta João Moreira Salles, em depoimento publicado no livro Canal 100 - Uma Câmera Lúdica, Explosiva e Dramática, com textos e organização de Claudia Pinheiro e Carla Niemeyer, lançado em 2014. "Ele foi o primeiro a desviar a câmara para o público. Para o torcedor com o radinho colado no ouvido enquanto via o jogo do Flamengo, na Geral. Ali, ele construía uma pequena narrativa, uma pequena história de alguns minutos."
Logo, o Canal 100 tornou-se um programa obrigatório para fãs. Bastava a tela do cinema se encher de bolinhas coloridas e surgirem os acordes da música Na Cadência do Samba, de Luiz Bandeira, para qualquer sala escura se transformar em arquibancada. As imagens empolgavam também torcedores ilustres, como o tricolor Nelson Rodrigues. "Foi o Canal 100 que inventou uma nova distância entre o torcedor e o craque, entre o torcedor e o jogo, em dimensão miguelangesca, em plena cólera do gol", escreveu. Em 1986, porém, com o fim da obrigatoriedade de exibição de cinejornais antes dos filmes, o Canal 100 ouviu o apito final.