Combate à pirataria vira campo de batalha entre confeiteiras e clubes de futebol

Por vezes, sem tantas condições financeiras nem apoio jurídico, confeiteiras e artesãos relatam que se sujeitam ao pagamento de multas abusivas por empresas que representam times de futebol

Por Édrian SantosEmanuel Colombari

Uma simples cotação de preços para um bolo temático do clube do coração de um aniversariante apaixonado por futebol pode esconder um problema judicial, com acusação de pirataria contra pequenos empreendedores.

Em casos assim, o suposto cliente, na verdade, pode ser o representante de uma empresa que defende interesses de times de futebol. O objetivo? Impedir o uso indevido das marcas desses clubes. Quem expõe a prática são os próprios micro e pequenos empreendedores notoficados extrajudicialmente.

Por vezes, sem condições financeiras nem orientação jurídica, essas confeiteiras entram num beco sem saída e se sujeitam ao pagamento de indenizações, consideradas desproporcionais por advogados especialistas, que não estavam previstas nos orçamentos delas. Nos últimos meses, as reclamações viralizaram na internet, colocando clubes na defensiva.

Enfim, é ilegal vender bolos e decoração de festa com escudos de clubes de futebol? Nesta reportagem, o Band.com.br traz detalhes das queixas e orientações de especialistas para esses casos.

Medo, trauma e multas desproporcionais

O amor pelo futebol, no Brasil, é quase unânime. Os escudos dos clubes estampam camisas e uma infinidade de souvenires que fazem parte da memória afetiva de quem não perde a oportunidade de homenagear o time do coração. Não seria diferente na comemoração de um aniversário, por exemplo, embora esta prática possa estar ameaçada.

Nas redes sociais, vídeos e milhares de comentários expõem empresas que representam os clubes. Segundo os relatos, elas atuam para fechar o cerco contra pequenos empresários, muitos deles microempreendedores individuais, como os que produzem itens de decoração e confeitaria para festas com a identidade visual dos times de futebol.

Sob anonimato, após contato do Band.com.br, trabalhadoras que já passaram por abordagens do tipo destacaram multas desproporcionais e traumas. Uma delas, sem dar mais detalhes por medo de ser notificada mais uma vez, revelou a existência de uma cláusula de confidencialidade no contrato que assinou.

“Eu fiz um acordo e já paguei a multa. As cláusulas que assinei diziam que não poderia nem citar o ocorrido, ou seja, já estou correndo risco em citar”, disse uma fonte que trabalha com a produção de embalagens e lembrancinhas para festas.

Na mesma conversa, a fonte informou que o escritório é bastante conceituado, mas, devido à confidencialidade, não revelou o nome da firma. O medo se fazia presente a cada mensagem trocada com a reportagem.

“Não quero me prejudicar ainda mais”, disse a fonte, enquanto reforçava a preocupação com possíveis retaliações.

Não quero me prejudicar ainda mais

O problema das notificações extrajudiciais

Segundo relatos colhidos pelo Band.com.br, a tática dessas empresas se resume a forçar acordos extrajudiciais, sem que o notificado tenha tempo e apoio jurídico necessário para se defender. Em um vídeo de alerta postado no Instagram pela confeiteira Aline Sants, uma seguidora relatou que pagou o “valor de um carro” para um “escritório que advoga para vários times”.

“Paguei uma multa altíssima para dois times. O mesmo escritório advoga para vários times. Vendo forminhas para doces. Na época, o anúncio tinha sido feito há pouquíssimo tempo. Vendemos cerca de R$ 187, e a multa foi o valor de um carro”, escreveu a seguidora na postagem da confeiteira Aline Sants.

O Band.com.br procurou a autora do comentário para falar mais sobre o caso dela. Num primeiro momento, aceitou ser entrevistada, mas, após novas tentativas, não respondeu à nossa equipe. A autora do vídeo, porém, conversou com a reportagem e destacou o temor de colegas de profissão quanto a não poderem mais fazer bolos e doces com temáticas de clubes, visto que, se os representantes dos times tomarem conhecimento disso, podem aplicar as multas ou judicializar o caso.

A motivação, quanto à gravação e publicação do vídeo pela influenciadora e confeiteira, ocorreu após ouvir relatos de alunas notificadas por escritórios que representam times. Na entrevista, alertou sobre postagens com conteúdos dos clubes nas redes sociais, ação que pode muni-los, e criticou o que chamou de valores absurdos cobrados aos pequenos empreendedores.

“Minhas alunas começaram a mandar mensagens no grupo que tenho falando sobre o que estava acontecendo, que receberam notificação extrajudicial. Vi outras pessoas na internet comentando que receberam. Foi aí que decidi fazer o alerta porque vi que a proporção estava crescendo, com muita gente notificada, sem saber o que fazer. No desespero, eu vi muita gente pagar esses valores absurdos. Eu vi uma pessoa que pagou desde R$ 2 mil a pessoas que pagaram R$ 15 mil, R$ 5 mil por cada time”, salientou Aline.

Ação de golpistas

Uma matéria da TV Band Minas, exibida no dia 11 de outubro, também mostrou relatos de confeiteiras que tiveram que pagar multa por uso indevido da marca de clubes. Uma delas chegou a ser multada em quase R$ 2 mil. A mesma reportagem alertou ao risco de golpistas que se aproveitam disso para causar prejuízo aos pequenos confeiteiros e artesãos que costumam trabalhar com logos e mascotes dos times.

Assim como alertou a reportagem da TV Band Minas, Aline, também professora de confeitaria, recomenda aos colegas e alunos que não assinem documentos sem antes consultarem um advogado. 

“Não sai no desespero [para pagar notificações], para não acabar caindo em golpes ou pagando algo que poderia ser resolvido de outra forma, ou até mesmo não ter acontecido nada. Então, tenho aluna que já recebeu a notificação há mais de um ano. Ela não pagou, porque estavam pedindo, acho, R$ 6 mil, e ela deixou ir para a Justiça e, até hoje, não teve nada”, alertou Aline.

Vitória revê política

Após a Nofake cobrar indenização de R$ 1,6 mil para uma pequena artesã que usou a identidade visual do Vitória para fins comerciais, algo ilegal sem o devido licenciamento, torcedores fizeram campanha contra a multa. A repercussão negativa fez o clube rever a política sobre o tema e “direcionar os esforços para grandes empresas”.

“Diante de toda a repercussão do fato, há um novo alinhamento entre o Clube e a Nofake, de direcionar as forças para grandes empresas. As pequenas, como o caso em questão, serão notificadas, sem a cobrança inicial de multa, que acontecerá caso a empresa permaneça comercializando a marca”, diz nota do Vitória publicada no dia 16 de agosto.

 

Guerra desigual

As fronteiras na área jurídica da proteção de marcas, porém, podem ser bastante incertas em casos assim. 

Segundo a advogada Fabiana Trovó, especialista em direito tributário, os clubes têm direito a licenciar suas marcas em busca de proteção contra a pirataria. Mas os conflitos, muitas vezes, podem ser desproporcionais.

“A marca em si é protegida - desde quando a lei surgiu, toda marca é protegida, e para você reproduzir aquilo, comercializar, você precisa licenciar. E só autoriza o licenciamento quem é o detentor da marca. Uma vez que você usa determinado símbolo sem esse licenciamento, sem autorização, você está ocorrendo numa ilegalidade”, explicou Fabiana, que diz que não há previsão de uma liberação do licenciamento para microempreendedores, por exemplo.

“Eu imagino até que seja um caso a se pensar a partir do que aconteceu. Não há essa proteção. Os detentores das marcas se protegem, porque eles têm a marca, então eles podem exigir, notificar, exigir multa, exigir na Justiça que parem de utilizar os logotipos e as marcas de identificação do clube. A legislação é para o detentor da marca. Na maioria das vezes, ela favorece o detentor da marca. É um pouco absurdo, do ponto de vista de pequenos empreendedores, que são só uma pontinha de iceberg no meio de uma pirataria enorme que todos nós sabemos que acontece”, analisou.

O ponto de vista é semelhante ao da advogada Larissa Mendes, especializada em questões de proteção de marca. Segundo ela, muitas vezes as violações são irrisórias às marcas dos clubes.

“A lei é muito clara ao falar que ela protege aquela marca devidamente registrada no INPI (Instituto Nacional de Propriedade Industrial). Precisa primeiramente verificar se este clube está de fato com esta marca registrada, se ele possui todas as licenças, para assim ele exigir ou informar que há aí um uso indevido - nos casos por exemplo de artesãos, de confeiteiras - da sua marca ou do seu brasão. Havendo isso pode ser realizada uma notificação extrajudicial ao pequeno empreendedor, para que ele possa estar ciente de que o que ele está fazendo é um uso indevido de marca e tentar ali uma composição”, disse Larissa, que também considera desproporcional o cenário em questão.

“É importante a gente ter uma proporção do que isso pode causar. De fato, o artesão, no seu trabalho, que vem em decorrência de um fã que solicitou o uso daquele brasão, o uso daquela marca, em determinado bolo ou copo: isso de fato vai trazer um prejuízo ao clube? Isso de fato vai complicar o uso da marca do clube? É importante a gente olhar a situação com aquela peculiaridade em si, e poder até enviar uma notificação extrajudicial, antes de tomar qualquer passo, judicialmente falando.”

Fabiana acredita ainda que a notificação extrajudicial pode se transformar uma ação mais ampla, embora acredite que a ferramenta pode ter a função de avisar pequenas empresas. “Eu acredito que, nesse caso, a intenção do clube foi só avisar mesmo. Acredito que nem vão insistir nesse pagamento de multa, mas talvez vão insistir na não reprodução, não utilização da marca. Mais como um aviso mesmo. Mas se não for pago, isso pode gerar um processo judicial, que pode depois ser obrigado a pagar multa, não utilizar a marca e eventualmente pagar danos morais para o proprietário da marca”, analisa.

Já para Larissa Mendes, os pequenos empresários podem se precaver de maneira simples, consultando previamente se os clubes registraram as marcas. A falta de registro abre a possibilidade para a produção informal de produtos.

“O microempresário, nessa esfera, ele pode até fazer da forma mais correta, que seria tentar fazer uma licença junto ao clube para aquele uso. Mas é uma licença que sairia caro, até pela questão do produto que está sendo vendido, e onde está sendo utilizado o brasão, o nome, aquela marca. É importante que o microempreendedor, ele entenda que a lei, ao mesmo tempo que protege o uso da marca para o clube, ela também não pode esbarrar na liberdade de expressão, na liberdade artística do microempreendedor, de uma empresa de pequeno porte. Ele precisa verificar se o clube de fato tem uma licença para exigir dele o uso indevido, ou se tem um contrato de licenciamento para o uso desta marca”, diz a advogada.

“Ele precisa verificar junto a um profissional se de fato essa marca possui uma licença, para também proteger o seu negócio. Pode ser que a marca não tenha ali um registro e está fazendo ali a exigência porque talvez esteja em trâmite, em análise. Então, ele tenta antecipar essa questão justamente para não ter maiores prejuízos. O microempreendedor, a empresa de pequeno porte, pode se blindar desta forma de verificar em casos específicos a liberdade de expressão, a liberdade artística, para não ser prejudicado. Até porque, se a gente for colocar em termos práticos, essa questão do uso indevido por uma artesã, o prejuízo seria muito maior para o microempreendedor. o valor que ela ganha não vai suprir uma licença de marca, um contrato junto com uma empresa maior”, completou.

Notificações além da confeitaria

Essas notificações extrajudiciais não se restringem ao uso irregular dos escudos dos clubes. Outras companhias têm representantes responsáveis por assegurarem que as marcas delas não sejam pirateadas, um direito dessas grandes empresas. Por outro lado, quem é notificado questiona o método de como é abordado.

É o caso de uma fonte do interior de Minas, entrevistada pelo Band.com.br. Na ocasião, disse que foi notificada pela Nofake, empresa que atua com proteção de marcas, inclusive a de grandes clubes de futebol. América-MG, ASA, Atlético-GO, Atlético-MG, Avaí, Cruzeiro, Joinville, Juventude, Palmeiras, Paysandu, Santa Cruz, Vasco e Vitória aparecem listados no site da empresa como “clientes e parceiros”.

Segundo a fonte mineira, o anúncio de uma bolsa postada no Facebook, em 2023, chamou a atenção da Nofake, ao constatar que o item se tratava de uma cópia ilegal. A partir disso, supostos funcionários do escritório se passaram por clientes para cotarem o preço das mercadorias com a anunciante. O que ela não sabia, porém, é que as informações repassadas, naquele momento, virariam provas que amparariam uma possível denúncia por pirataria.

Dias depois, munida de documentos com informações da pequena empresária, um suposto representante Nofake fez uma notificação extrajudicial para a remoção do anúncio e pagamento de multa estimada em R$ 1,5 mil. Caso se recusasse a assinar o acordo, a Justiça seria acionada e o valor, triplicado. Em meio a isso, ameaças de prisão intimidavam ainda mais a intimada.

Para mim, sim, eram ameaças porque sempre citavam essa questão de que, se não pagasse [a multa de R$ 1,5 mil], poderia ser presa por pirataria (fonte que relatou ter sido alvo da Nofake)

Suposta prática abusiva

Apesar da pressão, a comerciante, então revendedora de itens de confecção, não cedeu. Informou à empresa reclamante que, antes de assinar qualquer documento, conversaria com um advogado. Assim, foi orientada a aguardar uma notificação judicial, sob a alegação de que a suposta prática da Nofake, ao se passar por cliente, foi abusiva. Hoje, a mulher mudou de ramo e trabalha com semijoias, anunciadas numa rede social com pouco mais de 350 seguidores.

“Chegou uma mensagem que dizia que meu tempo havia terminado, que não seria mais possível eu fazer um acordo, que meu caso estaria sendo encaminhado para o Tribunal de Justiça e que, em breve, chegaria a notificação para comparecer ao tribunal para ser julgada”, narrou a mulher.

O Band.com.br chegou a questionar à fonte do interior de Minas se ela suspeitava de que a notificação da Nofake poderia ser de golpistas. Em resposta, disse que, dada a agressividade ao ser contatada, achou a “abordagem estranha”.

"Tema delicado"

Entre setembro e outubro, o Band.com.br entrou em contato com o CEO da Nofake, João Carlos. Ele confirmou casos envolvendo Atlético-GO e Vitória, mas afirmou que “esse se tornou um tema muito delicado para o clube” e deixou de responder à reportagem - entre outras perguntas, sobre como é feito o contato entre a empresa e os clubes e se existe alguma alternativa para que microempresas possam utilizar as marcas dos times de futebol.

Fundada em 2019 e com sede em Santos Dumont (MG), a Nofake informa em seu site que trabalha “com propósito de proteger o legado das marcas e seus consumidores (...), focada em combater em escala a venda de produtos falsificados online em todo o Brasil”.

“A gente consegue proteger esse legado, proteger o legado desses empreendedores”, afirma João Carlos em entrevista em vídeo publicada no site da empresa, que vê o serviço oferecido como “um produto que está resolvendo, sim, o problema da pirataria no Brasil”. As declarações focam principalmente na questão da pirataria do setor óptico, como a falsificação de óculos de sol, e não fazem referência aos artigos de festas.

“Foi para proteger o legado desses empreendedores - e também das pessoas que, assim como eu, também amam essas marcas - que a gente criou a Nofake. No começo, foi muito difícil. A gente estava numa cidade do interior, onde não tinham pessoas que conheciam a solução que a gente estava criando. Mas a gente sabia que a gente estava criando uma solução única, que ia funcionar muito bem. Porque a gente tinha outro olhar para o que a gente estava construindo. A gente estava olhando por baixo, olhando a situação de uma forma que a gente olhava para a marca, e não como a gente vai ganhar dinheiro da marca. A gente estava olhando para a marca, em como a gente consegue resolver aquele problema de fato para a marca, como a gente vai conseguir equilibrar esse jogo que é tão injusto e tão desleal com as marcas”, completou.

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