Copa de 1994, nos Estados Unidos. O primeiro dia de cobertura da minha primeira Copa como jornalista foi de longe o mais louco de todos, digno de um roteiro de filme de Hollywood. Estava em Los Angeles e fui acompanhar o treino da seleção de Camarões na cidade de Oxnard. Seria o encontro com os “Leões Indomáveis”, que quatro anos antes tinham encantado o mundo com sua alegria e bom futebol. Mas o que eu encontrei foi um cenário bem diferente.
Naquela Copa, Camarões seria um dos adversários do Brasil na primeira fase, ao lado da Rússia e da Suécia. A seleção camaronesa estava concentrada na cidade de Oxnard, na região da grande Los Angeles, e treinava em uma escola secundária típica norte-americana.
Assim que cheguei encontrei Jean-Pierre Tokoto, o chefe da delegação. Ele era um dos astros do time de Camarões na primeira participação da seleção em Copas, em 1982. Jogava com a camisa 10, era elegante e atuava sempre de cabeça erguida. Tokoto era também uma das figurinhas do álbum daquele Mundial. Continuava elegante.
Fui ver o treino. Lá estava o grande astro Roger Milla, o veterano artilheiro, na época com 42 anos. Milla ficava sentado em um canto, ninguém podia chegar perto. Conheci dois jornalistas franceses do L'Equipe que me ajudaram a entender o que rolava ali. “Está a maior crise aqui. O time não tem dinheiro, os jogadores estão cobrando para dar entrevistas. Milla só fala se alguém pagar", me explicou o colega francês.
Ao final do treino um jogador solta um palavrão em português. Era David Embé, que na época jogava no Belenenses, em Portugal, e tinha aprendido a linguagem da bola na nossa língua. Fui falar com ele, mas o Embé preferiu pedir ajuda a Emile M'Bouh, outro que já tinha jogado em Portugal e falava bem o português.
“Ô, brasileiro, tudo bem? Pois não, é o seguinte. A gente não tem chuteiras para treinar, falta uniforme, as bolas são emprestadas aqui pelo colégio americano e o dinheiro que nos prometeram, nada”, revelou M'Bouh.
O técnico de Camarões era Henri Michel, ex-treinador da seleção francesa. Ficou felizão de ver um jornalista brasileiro por ali, mas não queria dar nenhuma entrevista formal. Nem precisava. A crise escancarada pelos jogadores já era uma pauta e tanto.
Spike Lee fez a coisa certa
Na hora de ir embora, o jornalista francês veio me dar um toque: os jogadores Roger Milla, Oman Biyik e o goleiro Joseph-Antoine Bell iriam dar uma entrevista coletiva na loja do diretor de cinema Spike Lee na Rodeo Drive, a rua mais famosa de Los Angeles. Spike Lee soube que os “Leões Indomáveis” estavam famintos e resolveu ajudar.
Eu segui até lá e entrei na loja do famoso cineasta de Hollywood, na época famoso pelo filme “Faça a Coisa Certa”, sobre a questão dos negros e a violência que sofriam nos Estados Unidos. Spike Lee anunciou que organizou uma festa em um hotel de luxo para a alta burguesia negra norte-americana. O objetivo da festa era arrecadar dinheiro para os jogadores de Camarões.
Como o meu hotel era muito longe, fiz hora por ali e fui direto na tal festa. Os jogadores estavam todos lá. “Ô brasileiro, que bom que você veio!”, me abraçou o M'Bouh. O técnico Henri Michel já tinha tomado uns drinques a mais e veio me zoar. “E aí, brasileiro, seu fdp!”, disse em tom amistoso. Mulheres elegantes em roupas de luxo afro davam brilho à festa. Nem nos meus sonhos eu imaginei que Copa do Mundo teria tudo isso.
A campanha de Camarões naquela Copa foi um fiasco. Empatou na estreia com a Suécia por 2 a 2. Depois, contra o Brasil, levou um baile de Romário e Bebeto. A Seleção Brasileira venceu por 3 a 0. Camarões teve um jogador expulso, o zagueiro Rigobert Song, por um carrinho por trás em Bebeto. Song tinha 17 anos. Hoje ele é o técnico da Seleção de Camarões.
No último jogo da equipe africana naquela Copa, uma goleada sofrida para a Rússia por 6 a 1. O gol de Camarões foi marcado por Roger Milla, que se tornou o jogador mais velho a marcar em uma Copa do Mundo. Milla foi embora daquela Copa com o recorde e sem dar entrevista. Ninguém quis pagar.
Copa do Mundo de 1994
- Período: 17 de junho a 17 de julho de 1994
- País-sede: Estados Unidos
- Campeão: Brasil
- Vice-campeão: Itália
- 3º lugar: Suécia
- 4º lugar: Bulgária
- Artilheiros: Stoichkov (Bulgária) e Salenko (Rússia), 6 gols
- Participação do Brasil: tetracampeão após empatar com a Itália por 0 a 0 e vencer nos pênaltis por 4 a 3. O time era Taffarel; Jorginho, Aldair, Márcio Santos e Branco; Mauro Silva, Dunga, Mazinho e Zinho; Bebeto e Romário.. O técnico era Carlos Alberto Parreira. Também jogaram Cafu, Ricardo Rocha, Leonardo, Raí, Müller, Paulo Sérgio e Viola.
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Final: Brasil 0 x 0 Itália (4 a 3 nos pênaltis)
- Gols: Na decisão por pênaltis: Brasil 3 (Dunga, Branco e Romário) x Itália 2 (Albertini e Evani)
- Brasil: Taffarel; Jorginho (Cafu), Aldair, Márcio Santos e Branco; Mauro Silva, Dunga, Mazinho e Zinho (Viola); Bebeto e Romário. Técnico: Carlos Alberto Parreira
- Itália: Pagliuca; Mussi (Apolloni), Baresi, Maldini e Benarrivo; Berti, Dino Baggio (Evani), Albertini e Donadoni; Roberto Baggio e Massaro. Técnico: Arrigo Sacchi
- Árbitro: Sandor Puhl (HUN)
- Público: 94.194 pessoas
- Local: Estádio Rose Bowl, em Pasadena