Historicamente, a cerimônia do pódio na Fórmula 1 tem um roteiro bem conhecido. O hino nacional do país do piloto vencedor é tocado, assim como o hino nacional do país-sede da equipe que venceu. Depois, os três primeiros colocados recebem troféus, assim como um representante da escuderia vencedora. Por fim, os três primeiros colocados fazem a festa com garrafas de champanhe ao som de Carmen, ópera do compositor francês Georges Bizet.
Mas nem sempre foi assim. A começar que a festa do champanhe nem sempre foi - ou é - feita com champanhe.
Quem explica é a sommelière Débora Fernanda, que lembra uma “pegadinha” clássica para quem não é um conhecedor dos termos técnicos da enologia: todo champanhe é um espumante, mas nem todo espumante vai ser um champanhe. Afinal, o termo champanhe consagrou um tipo muito específico de vinho espumante, que só pode ser chamado de champanhe se for produzido exclusivamente na região de Champagne, no nordeste da França.
“O champanhe em si precisa ser feito de acordo com algumas regras específicas da região de Champagne, na França. Existem algumas uvas permitidas, a técnica utilizada também precisa ser uma técnica específica. Na maioria das vezes, os grandes espumantes mundiais utilizam essa técnica, chamada de Método Tradicional - ou Champenoise, quando é feita lá na região de Champagne”, explicou Débora.
“O método tradicional, como é feito com a maioria dos grandes espumantes mundiais, ocorre com uma segunda fermentação dentro da garrafa. E como funciona? Todo vinho começa como um vinho sem borbulhas, então ele faz a primeira fermentação em tanques, e depois ele precisa, para o espumante, criar essas bolhas. E no espumante método tradicional, como é feito o champanhe, a fermentação é feita dentro da garrafa. Então, o produtor coloca aquele vinho dentro da garrafa, coloca mais levedura para continuar fermentando, e as bolhas ficam ali dentro da garrafa. Quando essa segunda fermentação ocorre dentro da garrafa, isso é chamado de Método Tradicional”, acrescentou.
O outro método também utilizado para fabricação de espumantes é o método Charmat, também conhecido como método em tanque. Trata-se de um processo de fabricação no qual a segunda fermentação ocorre em tanques de aço inoxidável que são hermeticamente fechados - os chamados autoclaves - em vez de acontecer na garrafa. Os tanques mantêm a pressão necessária para preservar as bolhas formadas na fermentação. Ou seja: qualquer que seja o método, o processo demanda duas fermentações.
Sem champanhe?
No caso da Fórmula 1 nos dias de hoje, a festa do champanhe é, na verdade, a festa do espumante. Desde 2021, a comemoração na categoria é feita com garrafas de Ferrari Trento, um espumante italiano.
A última vez que o pódio da Fórmula 1 contou com um champanhe propriamente dito foi em 2020, quando a Moet Chandon fez parte dos pódios durante o período crítico de pandemia da Covid-19. Antes, as garrafas eram da francesa Carbon, que fornecia à categoria desde 2017 até 2019. E antes disso, os pilotos receberam champanhes da marca GH Mumm entre 2000 e 2015
Entre 2021 e 2024, a cerimônia do pódio aconteceu com o espumante Ferrari Trento, mas não foi a primeira vez que o brinde da Fórmula 1 foi com espumante e não champanhe. A Chandon ofereceu garrafas entre 2016 e 2017, mas com seus espumantes australianos no primeiro ano e espanhóis no segundo.
Assim, tecnicamente, nesses períodos “sem champanhe” a festa no pódio se tornou a festa do espumante - o que, com certeza, não é problema para quem está ali comemorando.
“O banho de champanhe, que até hoje ainda é utilizado, na verdade, estaria incorreto. Porque a gente tem hoje na Fórmula 1 um champanhe que não é um champanhe, e sim um espumante feito na região do Trento, na Itália”, explica Débora Fernanda. “Mas é feito com muita qualidade, é um produtor muito renomado – tanto que a Fórmula 1 escolheu para ficar desde 2021, se não me engano, como o espumante oficial.”
Sem champanhe!
Mas mesmo quando a Fórmula 1 adota o champanhe como bebida oficial, alguns pódios ficam sem. São os casos de países que proíbem o consumo de bebidas alcoólicas, como Arábia Saudita, Bahrein, Catar e Emirados Árabes Unidos. E aí, como faz?
Nestes casos, via de regra, as garrafas no pódio contêm bebidas sem álcool, como água saborizada, suco de frutas e até refrigerante.
“Nessa questão cultural que acaba limitando um pouco a comemoração dos pilotos nesses países onde não pode ser consumida a bebida alcoólica, eles colocam algum tipo de bebida que faça ali as borbulhas, mas que não seja fermentada e que não tenha o subproduto de álcool”, explicou Débora.
“Tem diversas. Eu vi que tem suco de maçã, suco de morango... Enfim, vai depender de cada país, para que isso não seja utilizado o álcool nessas comemorações”, completou.
Tradição por acidente
A história do champanhe na F1 remonta a 1950. Naquele ano, Juan Manuel Fangio venceu o Grande Prêmio da França, em Reims. Na comemoração, entre outros prêmios, recebeu um presente: uma garrafa do champanhe Moët & Chandon, oferecida pelos herdeiros da vinícola.
“A partir daí, começou a ser uma tradição utilizar o champanhe como uma forma de prêmio para os pilotos”, explicou Débora.
A tradição se espalhou para outras competições, mas sempre como um presente discreto. Mas a história mudou na edição de 1966 das 24 Horas de Le Mans, vencida pela dupla Bruce McLaren e Chris Amon (Ford). Na ocasião, as garrafas foram entregues não apenas para os vencedores, mas também para outras duplas que terminaram bem posicionadas - entre elas, Jo Siffert e Colin Davis (Porsche), que ficaram no quarto lugar e lideraram o chamado “índice de performance”.
Só que a rolha da garrafa de Siffert estourou, provocando um banho de champanhe no público que estava perto. A cena virou folclore e fez tanto sucesso que foi repetida por Dan Gurney e AJ Foyt (Ford) após a vitória na edição de 1967 de Le Mans.
“Isso daí acabou virando uma coisa pontual em 1966, que em 1967 o Dan Gurney repetiu esse banho, e aí realmente consolidou a tradição do banho de champanhe”, lembrou Débora.
Curiosamente, foi também em 1966 que a Moët & Chandon assumiu o posto de fornecedora oficial de champanhe da Fórmula 1, entrando para a história com um compromisso que terminou no fim de 1999. Para a alegria de fãs mais tradicionalistas, a marca deve voltar aos pódios em 2025, graças a um acordo da F1 com a LVMH, a holding francesa à qual a vinícola pertence.
O novo acordo de 10 anos incluirá várias das icônicas marcas da LVMH, como Louis Vuitton, Moët Hennessy e TAG Heuer. Com ela, o champanhe também deve voltar. Os detalhes da parceria serão anunciados no início de 2025, mas a Ferrari Trento já se despediu da categoria nas redes sociais: “Após quatro anos incríveis, saímos do pódio repletos de memórias inesquecíveis".