Em uma entrevista de 2021, Nelson Piquet se referiu repetidas vezes a Lewis Hamilton como “neguinho”. As declarações vieram à tona nos últimos dias e rapidamente geraram uma onda de repúdio – não apenas do próprio Hamilton, mas também da Mercedes, da Fórmula 1 e da FIA (Federação Internacional de Automobilismo).
Ao mesmo tempo, muita gente ainda parece não entender o teor racista da declaração. Por ingenuidade ou má-fé, associou a expressão a artistas como Neguinho da Beija-Flor e MC Neguinho do Kaxeta. Afinal, por que eles podem assumir o apelido se o termo é considerado racista para Hamilton?
Por isso, o blog entrou em contato com Marcelo Carvalho, fundador e diretor-executivo do Observatório da Discriminação Racial no Futebol – e, embora não estejamos falando de futebol, trata-se de uma das mais respeitadas referências no Brasil da questão do racismo no esporte. E para Carvalho, é fundamental entender o contexto que separa os nomes artísticos de Neguinho da Beija-Flor e MC Neguinho do Kaxeta do tratamento dado por Piquet a Hamilton.
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“O Neguinho da Beija-Flor se apresenta como Neguinho da Beija-Flor. O Neguinho denomina isso para ele. Porque não é estranho na sociedade brasileira algumas pessoas chamarem outras pessoas de ‘neguinho’ ou de ‘negão’. Faz parte da cultura linguística do Brasil. Mas nessa mesma cultura do Brasil, a gente sabe quando as pessoas querem chamar de ‘negro’, ‘neguinho’ ou ‘negão’ de forma pejorativa para te ofender, ou por ser teu conhecido, ou para te exaltar. A gente sempre soube a diferença”, explicou Carvalho, que criticou o que considera um “malabarismo” entre pessoas para justificar posturas racistas.
“No caso do Piquet, ele não tem intimidade nenhuma para chamar o Lewis Hamilton de ‘neguinho’. Aí começa a questão racial. Se a pessoa tem intimidade para chamar de ‘negro’, ‘neguinho’, é uma situação. A situação, como ele cita, foi para marcar a raça, a cor, a pessoa do Lewis Hamilton.”
Mesmo no caso de personalidades negras que atendem por apelidos do tipo, como o caso de Neguinho da Beija-Flor (que nasceu Luiz Antônio Feliciano Marcondes e incorporou legalmente o apelido ao nome), é preciso ter atenção à origem dos tratamentos. Afinal, a relação com o componente racial no debate mudou muito ao longo dos anos.
“Pode ser que esse apelido lá atrás possa ter sido um apelido racista. Assim como o Grafite (ex-jogador) assumiu o apelido Grafite no momento em que o apelido foi dado - ele pode não ter percebido como apelido era racista”, explica.
“A gente não sabe como o apelido do Neguinho da Beija-Flor nasceu. Mas a gente sabe que, na época em que nasceu, a gente não tinha esse espaço de mídia para reivindicar essas falas. Ao Pelé também foram feitas diversas tentativas de atribuir um apelido racista, e que não pegaram. A sociedade brasileira sempre quis atribuir a pessoas negras um apelido racista.”
Protagonismo nas discussões
O debate de questões como racismo, xenofobia e violência contra pessoas LGBTQIA+ ganhou força nos últimos anos na Fórmula 1 com o apoio de pilotos como Lewis Hamilton e Sebastian Vettel. Mas Marcelo Carvalho acredita que a categoria só consegue colocar tais assuntos em pauta a partir do momento em que os próprios pilotos abordam a questão.
“Nunca a gente discutiu tanto na Fórmula 1 a questão racial ou a questão LGBTQIA+, e a gente só está discutindo isso porque o Hamilton e o Vettel se colocaram nessa posição de puxar esse debate. Sem ter pessoas na posição, esse debate não é feito. O Lewis Hamilton, estando ali, colocou a Fórmula 1 na situação de discutir o racismo. Não é a Fórmula 1 que coloca”, acredita.
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Por isso, segundo o responsável pelo Observatório da Discriminação Racial no Futebol, “a Fórmula 1 vai com ele só até a página 2”. “A Fórmula 1 entra no debate, mas por ser comandada por pessoas brancas, determina até onde o debate vai acontecer”, acrescentou.
Assim, diz, é fundamental que protagonistas da F1 abordem tais questões. Segundo Carvalho, o risco profissional é menor para pilotos consagrados.
“Ele (Lewis Hamilton) coloca em risco a carreira dele. É cruel a gente tentar fazer paralelo com pessoas negras, atletas negros, atores negros. Ele está em uma posição em que se sente confortável para fazer isso e é o maior vencedor. Porque toda pessoa negra que se coloca na luta contra o racismo sabe o risco que corre.”
Emanuel Colombari
Emanuel Colombari é jornalista com experiência em redações desde 2006, com passagens por Gazeta Esportiva, Agora São Paulo, Terra e UOL. Já cobriu kart, Fórmula 3, GT3, Dakar, Sertões, Indy, Stock Car e Fórmula 1. Aqui, compartilha um olhar diferente sobre o que rola na F-1.