Rainha no Carnaval diz como se assumiu trans e celebra ser caminhoneira

Conheça Marcela Porto, a mulher trans coroada rainha da Acadêmicos de Niterói, no Carnaval do Rio, em 2023

Por Leonan Oliveira

Rainha no Carnaval diz como se assumiu trans e celebra ser caminhoneira
Marcela Porto é caminhoneira e rainha de escola de samba
Reprodução/Instagram

Uma das festas mais populares do ano no Brasil, o Carnaval é um forte movimento cultural e se destaca por apresentar ao mundo personagens curiosos, como é o caso de Marcela Porto, a Mulher Abacaxi – como ela se autodenomina. Aos 48 anos, ela foi coroada rainha da Acadêmicos de Niterói, que desfila pela Série Ouro do carnaval do Rio de Janeiro, mas sua história vai muito além disso: Marcela é uma mulher transgênero, influenciadora, funkeira e tem orgulho de dizer que ganha a vida comandando caminhões e retroescavadeiras em um depósito de minérios.

Em entrevista ao Band.com.br, Marcela contou que vem de uma família de caminhoneiros e destacou que o amor pela profissão faz parte de quem ela é. “Eu costumo falar que tenho Diesel na veia, eu amo caminhão. Sou influenciadora, MC e outras coisas, mas eu bato no peito para falar que minha profissão é ser caminhoneira… o resto é consequência”, disse. 

O Carnaval para mim é uma diversão, então eu não tenho a preocupação de ter que sambar bem e essas coisas. Claro que eu quero fazer bonito, mas estou lá para me divertir e minha profissão mesmo é ser caminhoneira. 


Com o tempo, o trabalho da Rainha da Acadêmicos de Niterói à frente de seu caminhão tomou proporções maiores e a Mulher Abacaxi virou dona do próprio negócio, emprega os próprios irmãos, mas não deixou de colocar a mão na massa. Ela contou que sua rotina é bastante movimentada e o dia de trabalho começa por volta das 05h00 e, entre preparações para o desfile na Marquês de Sapucaí, ela passa o dia pilotando caminhões e retroescavadeiras.

“Eu trabalho com caminhão caçamba… eu mesmo encho o caminhão de pedra e areia e, quando não tem funcionário, eu mesma entrego”, contou. “Graças a Deus eu cheguei em um patamar em que posso pilotar quando quero, mas ainda coloco a mão na massa”, continuou.

Marcela ainda contou que o conforto nos negócios é resultado de muito trabalho e lembrou que nunca abriu mão de sua profissão central, mesmo quando estava no auge de carreira como uma das personalidades do Furacão 2000 - um dos movimentos populares da história do funk. “Mesmo quando eu estava no auge, eu não deixei meu caminhão de lado”, disse.

Em suas redes sociais, que acumulam mais de 2,5 milhões de seguidores, a Mulher Abacaxi compartilha a dualidade de sua vida, mostrando os bastidores do Carnaval do Rio de Janeiro e a rotina da profissão. Para ela, sua força de vontade e garra para tocar sua vida é motivo de muito orgulho. “Eu luto muito e faço coisas que muito homem não faz. Acordo 4 horas da manhã, pego no caminhão, na minha retroescavadeira, e não tenho medo de trabalho”, afirmou. 

Eu consigo ser feminina e trabalhadora ao mesmo tempo, então me orgulho muito da mulher guerreira e batalhadora que sou hoje.


Para o desfile da Acadêmicos de Niterói, na Marquês de Sapucaí, Marcela Porto promete levar toda sua essência e representar a escola com toda sua garra de caminhoneira e delicadeza de rainha. 

Transição complicada e preconceito: como nasceu a Mulher Abacaxi?

Quem conhece Marcela Porto coroada rainha de escola de samba e cheia de autoconfiança, não imagina que a vida da caminhoneira de Campos dos Goytacazes nem sempre foi bem resolvida e seu processo de transição de gênero aconteceu de maneira tardia, carregado de anseios sobre como o mundo reagiria sobre sua identidade. “O meu processo de transição foi um pouco complicado porque aconteceu quando eu já era bem madura, com mais de 30 anos. Sempre fui de uma família de caminhoneiros, então eu tinha muito medo de como as pessoas iriam entender e reagir a isso”, lembrou.

Apesar do medo, Marcela contou que a revelação não trouxe problemas para a convivência familiar e celebrou: “Minha família me aceita, eu não dependo deles para nada, e não tive problemas. Em casa nós éramos seis homens e duas mulheres, agora somos cinco homens e três mulheres". 

O nascimento da Mulher Abacaxi aconteceu antes mesmo da transição de identidade de Marcela Porto, quando a entrevistada morava nos Estados Unidos e ganhava notoriedade em concursos LGBTQIA+. Marcela contou que, depois de vencer o Miss Brasil Gay, em 2007, em Nova York, estava planejando sua volta para o Brasil quando percebeu a movimentação forte das mulheres frutas - como a Mulher Melancia e a Mulher Jaca - e enxergou a possibilidade de ganhar o mercado do funk no país. “No concurso do Miss Brasil Gay USA, tinha que ter beleza e um talento e, na época, eu cantei uma música da Tati Quebra Barraco. Antes disso, eu já cantava funk, ainda de menino, então eu pensei 'já que eu ganhei um concurso montada, com uma apresentação de funk, quando eu voltar para o Brasil, eu vou ser uma mulher fruta'”, lembrou.

Embora defenda que o abacaxi seja a rainha das frutas, por conta de sua coroa, Marcela Porto contou que a escolha de seu nome artístico foi pensada para evidenciar sua singularidade. “Eu pensei em Mulher Banana, mas já tinha uma pessoa usando e eu queria uma fruta que as pessoas soubessem que não era uma mulher convencional, ai pensei em Mulher Abacaxi porque mulher nenhuma queria ser o abacaxi”, disse.

Se eu colocasse moranguinho ou pêssego, por exemplo, as pessoas podia tomar um susto quando me vissem, por isso eu escolhi abacaxi.

Mesmo enquanto Mulher Abacaxi e toda a visibilidade que tem, Marcela contou que o preconceito é parte de sua vida e relembrou uma situação que passou na academia em que frequentava. “A mulher do dono ia me emprestar umas roupas para eu fazer fotos e o marido dela disse que não era o perfil da loja uma mulher trans fazendo fotos com as roupas. Eu chorei muito”, contou.

Carnaval é visibilidade e Marcela quer ser exemplo

A coroação de Marcela Porto como rainha da Acadêmicos de Niterói foi oficializada no começo deste mês e despertou na caminhoneira uma esperança de dias melhores para homens e mulheres trans no Brasil. “Eu me senti maravilhada com a coroação e, para mim, o Carnaval é legal por conta da visibilidade que nós, pessoas trans, temos. Nós podemos ter cargos que antes não podia, como Rainha de Bateria ou Rainha da Escola”, disse.

Saber que nós podemos estar onde a gente quer, não onde querem nos colocar, é muito bom. Eu acho que a minha entrada no carnaval é muito boa para abrir portas para as trans. Espero que tenha muito mais daqui para frente.

Questionada sobre suas inspirações para a folia, a Mulher Abacaxi destacou a importância da modelo e atriz Luma de Oliveira: “Ela é minha inspiração desde pequena, eu acho ela maravilhosa, não tem ninguém como ela”. Marcela disse ainda que a inspiração vai muito além dos sambódromos e ela tenta homenagear Luma em diversos setores de sua vida artística, o que já rendeu até interações entre a rainha da Acadêmicos de Niterói e Luma de Oliveira. "Ela já me deu conselhos no Instagram, é um amor de pessoa.

O desfile da Mulher Abacaxi com a Acadêmicos de Niterói está marcado para acontecer no sábado, 17 de fevereiro de 2023. A escola será a 6ª agremiação na Marquês de Sapucaí e tem como enredo o “Carnaval da Vitória”. Saiba mais sobre o desfile da escola em 2023.