Facção que atua em presídios movimentou R$ 67 milhões em 2 anos e tem mais presos que o tráfico

"Povo de Israel" é alvo de uma operação da Polícia Civil e da SEAP, nesta terça-feira (22). Organização criminosa está presente em 13 unidades prisionais e comanda rede de golpes e extorsões

Por João Boueri

Policiais cumprem mandados de busca e apreensão contra o "Povo de Israel"
Imagem cedida

A rede formada por uma organização criminosa dentro de 13 unidades do sistema penitenciário do Estado do Rio de Janeiro pode ter ultrapassado o porcentual de presos ligados ao Comando Vermelho.

A facção autodenominada "Povo de Israel", ou PVI, conta com cerca de 18 mil integrantes custodiados, o que representa 42% do sistema penitenciário. Os criminosos autodenominaram os grupos dentro dos presídios como "as 13 aldeias".

A facção tem estatuto próprio, uma engenharia de divisão de tarefas e funções, repartição de lucros, captação de novos presos e pagamentos de propinas a servidores públicos.

Entre janeiro de 2022 e maio de 2024, o grupo movimentou mais de R$ 67 milhões em operações financeiras, segundo investigações. Ao todo, foram 1.663 pessoas físicas e 201 jurídicas envolvidas. Entre elas, policiais penais, esposas e até mães de detentos.

A reportagem da BandNews FM teve acesso a inquéritos da Polícia Civil, da Secretaria de Estado de Administração Penitenciária e do Ministério Público sobre a atuação da organização criminosa.

Em janeiro de 2024, um relatório técnico da Subsecretaria de Inteligência do Sistema Penitenciário destacou que as apreensões realizadas nas unidades que sofrem influência da facção PVI demonstraram o poder financeiro do grupo, por desvio de conduta e corrupção de agentes públicos.

O documento aponta o crescimento financeiro do grupo a partir de 2022. As recentes apreensões demonstram que o chefe da facção estava se dedicando ao tráfico de drogas intramuros para distribuir e vender entorpecentes dentro do sistema prisional.  

Cinco mil cento e oitenta gramas de pó-branco e 9.175 gramas de erva seca foram encontrados em quentinhas que estavam dentro de um caminhão, que iria entregar as refeições no Presídio Nelson Hungria, onde fica a base central do grupo dentro do Complexo de Gericinó, na Zona Oeste do Rio. No veículo, os policiais penais ainda apreenderam 71 celulares, 19 chips, 96 carregadores, 96 fones de ouvido e três balanças de precisão. A carga era avaliada em R$ 1,5 milhão.

Em outra unidade que sofre influência do "Povo de Israel", o Presídio Romeiro Neto, dois inspetores de polícia penal foram presos com 200 tabletes de maconha. Os dois casos aconteceram em setembro do ano passado.

Com o aumento de poder do grupo, outros criminosos de facções diferentes passaram a se aliar ao "Povo de Israel".

Segundo a investigação, os bandidos se especializaram nos últimos anos em crimes de disque-extorsão ou falso-sequestro, e golpes praticados no interior das unidades.

A estrutura dos crimes é dividida por chefes, funções e tarefas para o prática de extorsão e também tráfico de drogas. O primeiro grupo é formado pelos "empresários", que ficam com a responsabilidade de obter um aparelho celular para o segundo grupo chamado de "ladrão". Os detentos desse núcleo realizam as chamadas telefônicas para vítimas indeterminadas, inclusive de outros estados. Em seguida, a simulação de supostos sequestros de familiares ou a prática de estelionato é feita.

As transações bancárias são realizadas para "laranjas", pessoas que se disponibilizavam para receber os valores.

O sistema de extorsão reparte o lucro para os grupos da organização criminosa. Os empresários, ladrões e os laranjas ficam com 30% dos valores cada. O restante (10%) vai para uma espécie de poupança do "Povo de Israel".

Em 2024, mais de 109 mil casos de estelionato foram registrados no estado do Rio. Em setembro foram mais de 10 mil notificações, o maior para o mesmo mês desde o início da série histórica.

A extorsão também acontece em outros estados. Em 15 dias, o PVI movimentou R$ 50 mil mirando em vítimas comerciantes do Acre, Bahia, Ceará e Rio Grande do Norte.

O chefe da organização criminosa é Avelino Gonçalves Lima, conhecido como "Alvim". Ele é apontado também como a pessoa responsável por gerenciar o sistema fixo de divisão de tarefas, captação de novos presos e visitantes ao "Povo de Israel" articulando arrecadação e pagamentos de propinas a servidores públicos.

Segundo a Polícia Civil, Avelino já teria apresentado supostos vínculos com o Primeiro Comando da Capital (PCC).

A utilização de pessoas jurídicas também faz parte do esquema do "Povo de Israel". Uma construtora de fachada em São Gonçalo, na Região Metropolitana do Rio, tem como sócios um preso identificado como Edimeyson Leite Alves e a esposa. A suspeita é que a empresa tenha movimentado R$ 4 milhões.

O Ministério Público destacou que assim como a cooptação de agentes públicos, a organização criminosa utilizou familiares e visitantes dos custodiados para aumentar a rede de lavagem de dinheiro.

A esposa de Avelino, Adilângela de Araújo Mendes, aparece como uma das principais beneficiárias das transferências bancárias feitas por "laranjas". Segundo as investigações, ela movimentou cerca de R$ 275 mil no ano passado. Adilângela recebeu os valores de quatro pessoas, que são moradoras da cidade de Apiacá, no Espírito Santo. Juntas, elas movimentaram cerca de R$ 5,5 milhões.

As investigações ainda apontam que na mesma cidade, uma casa lotérica teve movimentação suspeita de R$ 132 mil em oito transações realizadas por Gabriel Lopes Murro, que reside no município.

Em seis meses, entre junho de 2022 e janeiro de 2023, ele movimentou um montante de quase R$ 3 milhões. As investigações apontam o " elevado volume de operações financeiras suspeitas, com movimentação fragmentada de recursos acima da capacidade financeira e recebimento de valores de contrapartes sem relação justificada, com rápida dissipação dos recursos recebidos".

Gabriel Lopes Murro também é citado em dez operações financeiras recebidas por uma empresa atacadista de fachada no estado do Rio.

Além disso, os criminosos Jailson dos Santos Barbosa e Ricardo Luís Martins Dias Junior também utilizaram as companheiras para a lavagem do dinheiro. As duas operaram mais de R$ 6 milhões em curto espaço temporal. Ao todo, os quatro movimentaram mais de R$ 10 milhões em dois anos.

O "Povo de Israel" surgiu de um efetivo de presos sem facção que procuravam um presídio restrito só para eles, assim como era oferecido para organizações criminosas. A primeira tentativa foi em 2004, no Presídio Hélio Gomes. O pleito não foi atendido, o que provocou uma rebelião no Presídio Ary Franco, quando oito detentos morreram.

O estatuto do grupo tem 19 mandamentos. Dentro do grupo, não é permitido utilizar a palavra "estuprador" e sim "amigo do artigo". Além disso, agressões não são permitidas. A organização criminosa não aceita "X9".

Anos depois, os presos autodeclarados "neutros" passaram a se concentrar em presídios específicos. Em uma visita realizada pelo Ministério Público no Presídio Penal Nelson Hungria, em março de 2024, foram observados banners com o símbolo da "estrela de Davi", utilizado na bandeira do estado de Israel.

Na manhã desta terça-feira (22), a Polícia Civil e a Secretaria de Estado de Administração Penitenciária deflagraram a Operação "13 Aldeias". Quarenta e quatro mandados de busca e apreensão são cumpridos, assim como o bloqueio de contas bancárias, valores e bens de 79 pessoas, quatro empresas e uma lotérica no valor limite de R$ 67 mihões, equivalente ao montante das operações suspeitas. A solicitação do Ministério Público tinha sido feita neste mês.

Cinco policiais penais tiveram os nomes ligados aos criminosos após receberem juntos mais de R$ 430 mil. Fabio Ferraz Sodré, Bruno Henrique Rodrigues Baldi, Plinio Brum Almada, João Paulo de Souza Nascimento e Anderson Vieira de Souza receberam transações de investigados presos ou operadores financeiros. Eles foram afastados das funções nesta terça-feira (22).

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