É falsa a postagem feita em um canal do Telegram chamado Médicos pela Vida, um grupo antivacina. Nela, o autor afirma, logo na primeira frase, que dados oficiais mostram aumento de 54% das mortes de crianças do sexo masculino desde que receberam o imunizante contra a covid-19.
Em seguida, o post reproduz a tradução de uma publicação do site britânico The Exposé e um vídeo do médico Vernon Coleman, em que ele critica o uso de máscaras e a atuação de governos no enfrentamento à Ômicron, nova variante do coronavírus. O portal The Exposé é conhecido por publicar textos com desinformação relacionada à covid-19.
No entanto, a postagem do The Exposé e o vídeo de Coleman não citam em momento algum o suposto aumento de mortes de crianças devido à vacina contra a covid-19. E importante destacar que o vídeo do médico tem conteúdo negacionista. A Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda o uso de máscaras para ajudar a diminuir a transmissão da covid-19, bem como frequentemente alerta para a importância da imunização como prevenção aos quadros graves da doença que podem evoluir à morte.
Além da publicação original não abordar óbitos de crianças, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e médicos consultados pelo Comprova negam a existência de indicadores que apontem o crescimento no número de mortes de meninos como consequência da imunização.
Na descrição do canal em que a postagem foi feita há um link que direciona para o site de uma instituição brasileira, de mesmo nome, que faz defesa do tratamento precoce contra a covid -19 (prática não recomendada pela OMS), mas o grupo afirma não ser responsável pela publicação.
O Comprova classificou o conteúdo como falso porque inventou um dado sobre mortes, que foi divulgado de maneira deliberada para espalhar uma mentira.
Como verificamos
Primeiramente, procuramos no Google por dados oficiais relacionados ao aumento de mortes de crianças devido à vacina contra a covid-19. A busca não gerou resultado. Depois, buscamos informações em sites de notícias sobre quais países já aplicam a vacina em crianças e se há notificações de efeitos colaterais graves ou mortes.
Entramos no link disponibilizado na postagem e assistimos ao vídeo completo do médico britânico Vernon Coleman, postado no site The Exposé.
Em seguida, pesquisamos pelo endereço do site sobreposto à imagem do vídeo. No portal, encontramos o vídeo e a transcrição completa do que é dito por Coleman. No vídeo, ele faz críticas à imprensa e diz que não tem e-mail público, o que inviabilizou o contato da reportagem com o britânico.
Conversamos com a secretária do Departamento Científico de Imunizações da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), Tânia Petraglia, e com o diretor da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm), Renato Kfouri, e os dois afirmaram desconhecer qualquer estudo que confirme o conteúdo verificado.
Por fim, a reportagem procurou o Médicos pela Vida, que informou não ser responsável pelo canal no Telegram em que a postagem foi feita, embora fosse esse o nome do grupo no aplicativo de mensagem. Não há outra forma de contato com o autor.
Verificação
Mortes de crianças
A vacinação de crianças ainda é uma estratégia recente no mundo, que priorizou a imunização de faixas etárias e grupos com maior risco de morte em caso de infecção pelo Sars-CoV-2. Por isso, Renato Kfouri, diretor da SBIm, afirma que não há tempo suficiente pós-vacinação para reportar evento adverso importante que dê base para o dado citado na postagem.
O diretor aponta que o estudo relacionado à vacina da Pfizer, a única que está sendo aplicada nos EUA nessa faixa etária, foi realizado com cerca de 2,5 mil crianças e verificou pontos como resposta imune, eficácia e segurança.
Kfouri afirma ainda que a realização de estudos pequenos na fase de licenciamento é comum, assim como também ocorreu na vacinação de adultos. O diretor observa que especialistas continuam fazendo farmacovigilância após o início da aplicação e que esta ainda aponta para o padrão de segurança observado nos testes clínicos.
“As primeiras vacinas da covid-19, quando foram licenciadas, também tiveram estudos em 10 mil, 20 mil, 30 mil, 40 mil indivíduos. Hoje, já existem 7 bilhões de doses aplicadas em todo o mundo, reafirmando a segurança dessas vacinas. Com criança é a mesma coisa”, diz Kfouri.
A pediatra Tânia Petraglia também não reconhece a estatística apresentada na postagem. A médica explica que os Estados Unidos trabalham com notificação espontânea de eventos adversos. Com isso, qualquer pessoa pode informar uma reação à vacina da covid-19. A notificação é apurada, em seguida, pelo Centro de Controle e Prevenção de Doenças do país.
Segundo ela, o país não divulgou dado de aumento de mortes de crianças supostamente provocadas pela vacina contra a covid-19. “Que eu tenha conhecimento, nenhum país suspendeu a vacinação em crianças por óbitos desproporcionais ou eventos adversos graves em série.”
Embora a vacinação de crianças ainda não tenha sido autorizada no Brasil, a Anvisa avalia pedido da Pfizer para iniciar a imunização do público de 5 a 11 anos e, além dos dados fornecidos pela farmacêutica, monitora o cenário de outros países.
Em nota, a agência informa que acompanha os dados referentes à vacina pelo mundo por meio de uma rede de monitoramento de eventos adversos. “Não há nenhum dado que indique aumento de óbitos entre crianças do sexo masculino em decorrência do uso das vacinas”, sustenta o órgão responsável pela aprovação de uso dos imunizantes no Brasil.
Vacinação para menores de 12 anos
Um levantamento realizado pela agência de notícias Reuters, no início de novembro, apontava que nove países já tinham começado a vacinar o público na faixa etária abaixo de 12 anos. Naquele momento, a imunização alcançava crianças do Bahrein, Chile, China, Cuba, El Salvador, Emirados Árabes Unidos, Estados Unidos, Equador e Indonésia, segundo informações da BBC. Esses locais usam vacinas diferentes: Sinopharm, Sinovac (Coronavac), Soberana 02 e Pfizer.
No final do mês, a Agência Europeia de Medicamentos (EMA) autorizou uma versão reduzida da vacina da Pfizer, para crianças, nos países que compõem a União Europeia.
Itália, Grécia e Portugal já incorporaram a medida. No dia 7 de dezembro, as autoridades de saúde da Espanha também liberaram a vacina para crianças de 5 a 11 anos a partir de 15 de dezembro.
No mesmo dia, diante da nova onda de casos de covid-19 na Europa, a OMS fez um alerta para aumentar a proteção de crianças, a faixa etária mais afetada neste momento.
Vacina para crianças no Brasil
A Anvisa, em nota, afirmou ao Comprova que, até 8 de dezembro, o único fabricante que havia solicitado avaliação da agência para incluir o público menor de 12 anos na bula da vacina contra a covid-19 era a Pfizer.
O pedido foi enviado à Anvisa no dia 12 de novembro e está no prazo de 30 dias previsto para análise. No dia 6 de dezembro, atualização mais recente sobre a solicitação, a farmacêutica encaminhou informações adicionais para a agência, que havia exigido mais dados para avaliar a implementação da estratégia de imunização no público de 5 a 11 anos.
Nova variante
A África do Sul alertou sobre a Ômicron no final do mês passado, afirmando que a variante poderia desencadear novo surto de infecções. Cientistas do país informaram no dia 10 de dezembro, contudo, que não veem sinais de que a nova cepa esteja causando quadros mais graves. Os atendimentos decorrentes da doença aumentaram no país sul-africano, mas as mortes não tiveram a mesma escalada.
No país, a dose de reforço foi autorizada para toda a população adulta.
O grupo de médicos
A postagem que trata sobre o aumento de mortes de meninos em decorrência da vacina foi compartilhada em um canal no Telegram denominado “Médicos pela Vida”, mas o grupo que, oficialmente, assim se denomina, diz não ter relação com a publicação.
A assessoria dos médicos que defendem o chamado tratamento precoce, sem eficácia comprovada contra a covid-19 e cuja aplicação não é reconhecida para estes casos por organizações como a OMS, informou não ter canal no Telegram.
“A entidade reforça que repudia a divulgação de informações errôneas que visem a conduzir a sociedade e a própria classe médica a incorrer a erros de interpretação. Seja por parte de redes sociais, mídias digitais e a imprensa”, diz, em nota.
Quem é Vernon Coleman
Muito antes da pandemia da covid-19, o britânico Vernon Coleman já colecionava polêmicas devido a seu posicionamento contrário à assistência médica convencional e ao uso de vacinas, segundo aponta uma reportagem da Revista Época de 2006. Formado em Medicina, abandonou a prática há 45 anos e passou a criticar a atuação dos profissionais da área.
Em março deste ano, foi alvo de uma checagem do PolitiFact devido a um vídeo em que dizia que as vacinas são armas de destruição em massa, alegação desmentida na verificação feita pelo site norte-americano. Nessa reportagem, entre outras informações sobre o perfil de Coleman, a equipe lembrou que ele negou a existência do HIV e que publicou um livro, em 2019, que tentava desacreditar a eficácia e segurança das vacinas. Nessa mesma verificação, o PolitiFAct aponta que a licença de médico de Vernon foi cassada, embora ele se apresente em sua página na internet como clínico geral.
Mais recentemente, a Reuters apontou, em uma checagem, que Vernon usou, de maneira enganosa, o resumo de um artigo, que não havia sido revisado por pares, para justificar sua teoria de que as vacinas contra a covid-19 seriam um risco às pessoas.
Por que investigamos?
Em sua quarta fase, o Comprova checa conteúdos suspeitos sobre governo federal, pandemia e eleições que tenham atingido alto grau de viralização. Essa publicação no Telegram alcançou mais de 26 mil visualizações até o dia 10 de dezembro.
Conteúdos de desinformação são frequentes nas abordagens sobre a covid-19 desde o início da crise sanitária. Primeiro, para minimizar os riscos da doença ou promover remédios sem eficácia, e, agora, para colocar em dúvida a eficácia e segurança das vacinas.
Essa prática é danosa porque leva muitas pessoas a recusarem a imunização, estratégia que, até o momento, se mostra como a mais efetiva para prevenir casos graves e mortes provocadas pelo coronavírus.