Trabalho, como potência transformadora ou adoecimento psíquico

Os Nós da Mente

Neste espaço você irá ter um conteúdo onde vamos discutir temas que têm tudo a ver com a sua angústia. O divã será o blog e o psicanalista é o grupo de autores que vão escrever os artigos que irão abordar filmes, livros, músicas e o cotidiano, mas tudo ligado à saúde mental. Você irá perceber que não está sozinho. Vamos dar as mãos para caminharmos na jornada do autoconhecimento. Isso porque esse é um blog de psicanálise para você!

Trabalho, como potência transformadora ou adoecimento psíquico
Trabalho, como potência transformadora ou adoecimento psíquico
Divulgação

Por Yara de Barros, psicanalista - @yara.de barros

Adão, expulso do paraíso, foi condenado (e o que é pior, com ele, Eva e nós, sua descendência) a ganhar o pão com o suor do próprio rosto (Gênsesis 3:19). Trabalho vem do latim tripalium, que deriva de um verbo cujo significado é torturar. Na civilização romana o termo negócio também tinha um significado depreciativo: “negação do lazer” (negotium). A nobreza medieval usava longas rendas brancas nos punhos para atestar seu ócio aristocrático. E em nossa época, 2022, a OMS definiu burnout como estado mental afetado pelo estresse profissional crônico, ou seja, doença causada pelo trabalho. 

Com tudo isso parece que a humanidade está condenada a queimar eternamente no fogo do inferno laboral, até que possa se aposentar. Passamos a maior parte da nossa vida no trabalho, e se o trabalho for considerado suplício, não trabalhar seria a solução? Não necessariamente. O desemprego na maioria das vezes não parece alternativa viável e também pode adoecer. Privados do trabalho, homens e mulheres sentem-se excluídos da sociedade, de um senso de pertencimento e sentido que afeta sua autoestima, amor próprio e saúde, o que pode se expressar numa depressão.

Então estamos numa grande enrascada patogênico-laboral? Nem tanto. O trabalho como desencadeador de patologias encontra sua contrapartida no trabalho que ajuda na construção de uma identidade capaz de saúde mental. A relação com o trabalho nunca é neutra, está sempre presente, tanto na construção da saúde mental quanto na gênese da doença. Palavras de Christophe Dejours, psicanalista francês, autor da teoria da psicodinâmica do trabalho. Para ele, se o trabalho pode gerar adoecimento, também pode trazer à tona enorme potência transformadora. De si e do social.

Muitas vezes é o investimento maciço no trabalho que salva o indivíduo do sofrimento psíquico de um luto, por exemplo. É o que Freud denominou sublimação, um mecanismo que nosso inconsciente usa para deslocar a energia que nutre a dor psíquica e reorganizar nossa vida mental empenhando essa energia em comportamentos produtivos e socialmente valorizados.

Se o trabalho tem trazido sofrimento a você, esse sofrimento é um grito que serve ao mesmo tempo como um alarme de perigo e um pedido de ajuda. Uma mensagem em código que, devidamente investigada, pode ser decifrada para que você entenda que lugar o trabalho ocupa em seu funcionamento mental, na sua saúde, no seu adoecimento, e na sua vida como um todo. 

É impossível separar a vida privada da profissional, não é assim que funciona nossa organização psíquica. Involuntariamente, levamos para o trabalho questões pessoais, e vice-versa. Ao sair de casa ou do ambiente de trabalho, continuamos sendo quem somos, não trocamos nem de pele, nem de organização mental: as duas modalidades de existência se permeiam.

A psicanálise atua nesse território: a escuta dos sofrimentos psíquicos que permite que, juntos, paciente e analista decifrem o significado de sintomas que pedem ajuda ao mesmo tempo que denunciam abusos que sofremos de terceiros ou de nós mesmos. Ela busca a origem do sofrimento psíquico não somente na história de vida do sujeito, mas levando também em consideração o ambiente profissional, as relações de trabalho, e ainda o contexto contemporâneo que o cerca. A psicanálise ajuda assim a inventar caminhos alternativos para que novas formas do ser sejam possíveis e que permitam a coexistência de saúde e trabalho. 

O trabalho contribui para a construção de nossa identidade, ele nos desafia todo o tempo para que acessemos nossos melhores recursos e usemos nossa capacidade criadora em sua plenitude. Quando o trabalho nos adoece, sinaliza que algo está impactando nossa saúde e que precisamos descobrir o que fazer sobre isso. A decisão é sempre nossa. O sofrimento insustentável pode ser combustível para autotransformação profissional e, portanto, pessoal. Nas palavras de Dejours: Trabalhar nunca é tão somente produzir; é, no mesmo movimento, transformar-se a si mesmo.