Neste espaço você irá ter um conteúdo onde vamos discutir temas que têm tudo a ver com a sua angústia. O divã será o blog e o psicanalista é o grupo de autores que vão escrever os artigos que irão abordar filmes, livros, músicas e o cotidiano, mas tudo ligado à saúde mental. Você irá perceber que não está sozinho. Vamos dar as mãos para caminharmos na jornada do autoconhecimento. Isso porque esse é um blog de psicanálise para você!
Por Márcia Uehara, psicanalista e empreendedora em tecnologia - @marcia.uehara
Não importa se você pisa o chão de fábrica, a Faria Lima ou a estrada de terra do agronegócio: é garantido que ali estarão duas versões de você juntas e misturadas: o adulto e a criança.
A infância é um chão que a gente pisa a vida inteira
Essa frase clássica no meio psicanalítico comprova diariamente que os acontecimentos vividos em nossa infância são parte estruturante da nossa forma de agir no mundo adulto e claro, no exercício do nosso trabalho profissional.
Somos habitados por ideias, percepções e memórias que determinam a nossa atuação no cotidiano , sem nos darmos conta de que esses processos inconscientes estão no comando da nossa orquestra interna, tocando músicas que não foram selecionadas pelo eu consciente.
Se não passamos por um processo de fala, escuta e elaboração desse material, corremos o risco de ficar repetindo, repetindo e repetindo comportamentos prejudiciais, sem que saibamos o motivo desse mecanismo. É comum as pessoas dizerem “fiz aquilo novamente e não sei dizer porque, foi mais forte do que eu, quando percebi já o tinha feito” e assim a vida vai acontecendo com as pessoas trocando de emprego, de relacionamento, de cidade, na esperança de mudanças significativas e muitas vezes continuam recaindo nas mesmas atitudes só mudando o palco de atuação, desembocando nas mesmas queixas e sofrimentos.
Muitas pessoas no ambiente corporativo relatam ter chefes abusivos. Se escutarmos esses mesmos chefes, eles reclamarão que os subordinados não fazem o que lhes é pedido. Lideranças acusam os pares de não colaborarem. Liderados relatam carregar os colegas nas costas. Será que o problema está nas pessoas? Seria a tropa do bem contra a tropa do mal?
A escuta psicanalítica comumente diz que não. O problema está em como as pessoas se relacionam, principalmente sob cenários de muita pressão, algo tão normalizado na atualidade.
É preciso gerar lucro, mas de forma colaborativa, em alta velocidade, sob um mar de incertezas econômicas, fazer entregas que estejam no budget, ao mesmo tempo ambientalmente sustentáveis, mitigando riscos sob margem de erro quase zero e claro, praticando ativamente a inclusão de minorias sociais. Parece complicado? “O mundo nunca foi tão complexo”, é a fala corriqueira nos corredores das empresas.
Na modernidade líquida de Zygmunt Bauman, sociólogo e filósofo polonês, os trabalhadores prensados sob exigências digitais (e cada vez mais inteligentemente artificiais!) , tendem a regredir em seus comportamentos, projetando no exterior medos antigos, comportamentos daquele chão que foi pisado na tenra infância. É sobre vivermos numa época em que as relações sociais, econômicas e de produção são frágeis, fugazes e maleáveis, como os líquidos o são.
Na base do organograma, dificuldades atuais com o chefe podem ser uma versão atualizada do relacionamento com pai/mãe/professor e outras figuras de autoridade da primeira infância. “Levei a maior bronca. Me senti acuado, diminuído. Tenho medo de decepcioná-lo” , são narrativas comuns.
“Apaguei arquivos do servidor sem querer e menti para o chefe dizendo que nada sabia”, pode estar para o antigo “não vou contar para o papai que quebrei o vidro da janela da vizinha”, por exemplo. Medo de represálias na forma de omissão de confissão de alguma peraltice ou barbeiragem.
Subindo na hierarquia, líderes insatisfeitos com a performance de seus liderados, podem estar refletindo reações de um filho/filha que um dia também já foram.
“Não bater a meta de vendas” atual pode estar para o antigo “Tirar uma nota vermelha no boletim”;
“Sou seu chefe, faça o que eu disse, pois sou eu que vou dar a cara pra bater na reunião do board. Essa geração Z questiona demais e se compromete de menos. Já falei mil vezes como é para ser o trabalho, não entendo como pode ter tanta dificuldade.”. Para cada afirmação dessas, podemos encontrar um correspondente do universo infantil sem muito esforço.
Entre pares, alguém que se desentende com algum colega invoca rivalidades típicas que tinha com o irmão, irmã, primos, crianças próximas. “Esse novato mal chegou na empresa e ganhou o melhor notebook. Esse fanfarrão trabalha duas horas por dia e aponta oito. Esse carreirista não sabe mais como se mostrar para o chefe. Fiz todo o trabalho e o oportunista vai levar os louros. Por causa desse folgado não vamos bater a meta e ganhar o bônus”. Novato, fanfarrão, carreirista, oportunista e folgado podem ter mais a ver com seus irmãos, primos e colegas do que pode imaginar a nossa vã filosofia corporativa.
Logo se formam as panelinhas dos que se identificam como amigos, organizados em grupos de WhatsApp para trocar memes e fofocas sobre os colegas e chefes, com a cumplicidade do “isso fica só aqui entre nós, não vai encaminhar ou vazar esse áudio, hein”. Nada muito diferente da dinâmica entre a turma da rua de cima contra a turma da rua de baixo do bairro.
Bruce Fink, psicanalista norte-americano, contextualiza em O sujeito lacaniano (1995): “As crianças geralmente consideram que seus irmãos pertencem à mesma categoria que elas, e não suportam um tratamento abertamente preferencial pelos pais a qualquer outro, a não ser elas mesmas, padrões duplos, etc. Acabam odiando os irmãos por tirarem seu lugar especial na família, por roubarem-lhes as luzes da ribalta e por desempenharem melhor do que elas as atividades que os pais apreciam. Com o passar do tempo, esse mesmo tipo de rivalidade, em geral, se estende aos colegas de classe, primos, amigos e assim por diante. Muitas vezes, a rivalidade em tais relacionamentos gira em tomo de símbolos de status e envolve uma variedade de outros elementos simbólicos e linguísticos também. O que caracteriza tais relacionamentos é que as duas partes se veem como mais ou menos iguais – independente de pequenas diferenças de idade, notas escolares, sucesso social , etc – e podem se imaginar no lugar do outro com facilidade . É dessas comparações que surgem a rivalidade e o ciúme.”
Escutar a empresa não é escutar o CNPJ. É a soma da escuta de CPF´s que se relacionam em várias dimensões dentro da empresa. As empresas que se permitem compreender os motores inconscientes que movem o mundo, podem viabilizar a melhor costura de narrativas, diferenças e complementariedades, construindo um ambiente confiável e colaborativo para a construção de uma história onde todos sentem pertencimento, raízes, folhas e galhos de uma genealogia empresarial. Não raro testemunhamos posts no LinkedIn que se referem aos colegas de trabalho como “família”, post estes aplaudidos em público e colocados sob dúvidas no privado, como se fosse um exagero romântico.
Considerando que a criança está contida no adulto e as relações de trabalho espelham sua forma mais primitiva de se relacionar com os pioneiros de suas relações infantis, sob este ponto de vista , todas as empresas são familiares.