Por quem os sinos dobram?

Reflexões sobre a guerra

  • facebook
  • twitter
  • whatsapp
  • facebook
  • twitter
  • whatsapp

Os Nós da Mente

Neste espaço você irá ter um conteúdo onde vamos discutir temas que têm tudo a ver com a sua angústia. O divã será o blog e o psicanalista é o grupo de autores que vão escrever os artigos que irão abordar filmes, livros, músicas e o cotidiano, mas tudo ligado à saúde mental. Você irá perceber que não está sozinho. Vamos dar as mãos para caminharmos na jornada do autoconhecimento. Isso porque esse é um blog de psicanálise para você!

Por quem os sinos dobram? Reflexões sobre a guerra
Divulgação

Por: Vera Lúcia B. Baroni, psicanalista - @vera.bbaroni_psi

 

“Nenhum homem é uma ilha isolada; cada homem é uma partícula do continente, uma parte de um todo; se um torrão é arrastado para o mar, a Europa fica diminuída, como se fosse o solar de teus amigos ou o teu próprio; a morte de qualquer homem me diminui, porque sou parte do gênero humano; e, por isso, não perguntes por quem os sinos dobram; eles dobram por ti.” (John Donne) 

Em 1940, Ernest Hemingway, um dos mais influentes escritores da literatura americana, publicou um romance ao qual deu o título de “Por Quem os Sinos Dobram”, numa referência ao poema Meditações XVII, de John Donne, em epígrafe. O romance, ambientado na Guerra Civil Espanhola, faz uma reflexão não apenas sobre a guerra, mas, também, sobre a morte, a solidariedade humana e a interconexão entre todos os seres humanos.

Nascido em 1899, Hemingway vivenciou as duas grandes guerras mundiais, além de ter atuado como correspondente de guerra em vários outros conflitos bélicos regionais e de menor proporção. Tal vivência marcou profundamente sua vida e sua obra, sendo o tema da guerra recorrente em seus romances. 

Refletindo sobre as experiências de Hemingway envolvendo várias guerras, observamos que a última Grande Guerra terminou oficialmente em maio de 1945. E, de lá para cá, a humanidade nunca vivenciou um período de paz plena, pois nunca deixou de existir algum tipo de conflito bélico, acontecendo em alguma parte do globo terrestre. 

De acordo com resultados de pesquisa, há divergências quanto ao número exato de conflitos bélicos em andamento no mundo atualmente, sendo os mais divulgados os conflitos do Iêmen, da Síria, do Azerbaijão versus Armênia na disputa por Nagorno-Karabakh, o conflito da região africana do Sahel, o da Ucrânia versus Rússia na disputa pela Crimeia e, mais recentemente, o conflito entre Israel e o Hamas. Este último, segundo alguns analistas, com potencial para envolver o mundo em uma Terceira Grande Guerra, aumentando exponencialmente o sofrimento das populações civis em todo planeta.

Ao olharmos para esse cenário desolador, surge a inevitável pergunta: por que, em pleno século XXI, num momento em que a humanidade experimenta um desenvolvimento tecnológico sem precedentes na atual civilização, ainda não conseguimos superar nossos instintos primitivos de morte e destruição? Em nosso auxílio na busca por respostas à essa pergunta, a psicanálise nos aponta algumas motivações possíveis.

Para Freud, a principal motivação psicológica para a guerra está em nossa pulsão de morte. Segundo ele, a pulsão de morte é uma força interna que pode levar o ser humano a buscar a destruição e a morte. Essa força interna e agressiva pode ser direcionada em dois sentidos, um, interno, voltado contra o próprio indivíduo e outro, externo, voltado contra o mundo natural. 

A forma interior de manifestação da pulsão de morte se dá quando sua agressividade é dirigida contra o próprio indivíduo, através do sentimento de culpa e comportamentos autodestrutivos. Já a forma exterior pode se revelar na agressividade manifestada contra o “outro”, o “diferente”, o que não pertence ao grupo. 

Após os ataques do Hamas e a contraofensiva desencadeada por Israel, temos presenciado à inúmeras manifestações, em vários países, de apoio das massas à ofensiva realizada pelo Hamas, supostamente em nome da libertação do povo palestino, bem como manifestações de apoio à contraofensiva israelense. Além da inegável manipulação política ideológica por trás dessas manifestações, é evidente a influência dos mecanismos pulsionais da psique, nos quais está envolvida essa tendência agressiva inerente ao próprio indivíduo, a sua pulsão de morte direcionada contra o “outro”. É inegável que essa tendência, eficientemente administrada por sistemas político ideológicos autoritários, tem conduzido periodicamente a humanidade à violência e à destruição.

Outra forma de interpretar os eventos bélicos é a proposta pelo filósofo Michel Foucault, cujo método de problematização crítica está muito relacionado aos conceitos e categorias psicanalíticos. Segundo ele, a guerra seria uma forma de violência estrutural das relações sociais e políticas, uma vez que envolve a dominação e a submissão de um grupo sobre o outro. Nesse sentido, a guerra também pode ser vista como uma forma de afirmar a identidade nacional e de demonstrar a superioridade de um povo sobre outro. Aplicando essa análise ao conflito entre o Hamas e Israel, segundo um artigo do Aedos - Revista Eletrônica do Programa de Pós-Graduação em História da UFRGS, a construção da identidade nacional palestina ocorreu como reação ao movimento de ocupação sionista e à formação do Estado de Israel. 

Ainda analisando o conflito entre o Hamas e Israel, os atos extremos de violência e crueldade praticados podem ser categorizados como atos de desumanização do “outro”, uma vez que esse “outro” passa a ser visto como uma ameaça à própria existência. Para a psicanálise, a desumanização é uma forma de projeção – outro conceito desenvolvido por Freud – segundo o qual os indivíduos projetam no “outro” seus próprios aspectos menos humanos, justificando seus atos cruéis.

Considerando todas essas contribuições teóricas, na tentativa de compreender as possíveis causas estruturais políticas e sociais, bem como as causas psíquicas que podem levar a tantos conflitos bélicos, resta a pergunta: conhecer as causas justifica o imenso sofrimento pelas perdas humanas e materiais provocadas por esses conflitos? Hemingway nos responde:

“Não importa quão necessária ou justificável seja uma guerra, ela será sempre um crime.” 

Retornando às palavras de John Donne, ecoadas por Hemingway e confrontadas com a realidade contemporânea, somos levados a refletir sobre a interconexão entre todos os seres humanos. Donne nos lembra de que a morte de qualquer indivíduo nos diminui, pois somos parte de uma mesma humanidade. Como tal, os sinos não dobram apenas por aqueles que sucumbem nos conflitos bélicos, eles dobram também por toda a humanidade que, direta ou indiretamente, compartilha o horror da violência e do extermínio. 

Em um mundo tão interligado, é urgente que busquemos compreender nossas motivações destrutivas para poder controlá-las e trabalhar em direção a uma coexistência pacífica. Afinal, somos todos parte do mesmo continente humano e a vida de qualquer ser humano, ceifada em guerras por poder e dominação nos diminui, nos empobrece enquanto humanidade.

  • facebook
  • twitter
  • whatsapp

Utilizamos cookies essenciais e tecnologias semelhantes de acordo com a nossa Política de Privacidade e, ao continuar navegando, você concorda com estas condições.