Por onde eu começo a ler Freud?

Dicas para quem se aventura sozinho pelas primeiras leituras de Freud

Os Nós da Mente

Neste espaço você irá ter um conteúdo onde vamos discutir temas que têm tudo a ver com a sua angústia. O divã será o blog e o psicanalista é o grupo de autores que vão escrever os artigos que irão abordar filmes, livros, músicas e o cotidiano, mas tudo ligado à saúde mental. Você irá perceber que não está sozinho. Vamos dar as mãos para caminharmos na jornada do autoconhecimento. Isso porque esse é um blog de psicanálise para você!

Freud: criador da Psicanálise
Freud: criador da Psicanálise
Divulgação

Por Lister Parreira Duarte, psicanalista

Vez que outra me aparece alguém interessado em ter um primeiro contato em vôo solo com a obra de Freud e que me pergunta por qual texto começar. Na mais recente, foi a filha de um amigo, recém aprovada no vestibular de uma graduação em psicologia. 

Respondi a ela que os melhores textos para o leitor solitário que desconhece Freud iniciar-se na sua obra são aqueles aos quais o pai da psicanálise dedicou seu tempo e seu gênio pensando justamente nisso: receber o recém-chegado nas fronteiras da psicanálise para um passeio guiado pelo mapa dos seus territórios.

E que embora haja quem defenda que os primeiros contatos com Freud devam ser feitos através de textos introdutórios escritos por comentadores, o autor de um texto introdutório à obra do pai da psicanálise sempre trará consigo o viés das próprias experiências com a psicanálise em suas diferentes vertentes, e também trará as marcas de um tempo que é o do comentador, e não, o tempo de Freud; e que este último é uma dimensão inseparável da sua obra porque é fundamental para a sua compreensão.

E perguntei: Quem seria mais indicado para nos apresentar uma criação que desde o seu surgimento é uma das que mais tem influenciado a humanidade, do que aquele que a concebeu e foi o maior responsável pelo seu desenvolvimento e pela divulgação?

Lembrei-a que ao iniciante que me escuta dizer o que se vê no parágrafo anterior, pode parecer que toda a obra de Freud seja escrita com uma preocupação didática e numa forma acessível. Mas que embora uma das grandes marcas da escrita de Freud seja a busca da maior clareza possível do texto, ele sempre fez isso levando em consideração o público ao qual se dirigia.

Público que poderia ser constituído ora por colegas que já se dedicavam ao estudo, à prática, e ao desenvolvimento da psicanálise; ora por colegas não simpáticos – ou mesmo hostis – a ela; e ora, ainda, por pessoas leigas, estivessem elas prévia e positivamente sensibilizadas ou não em relação às suas teorias e práticas. 

Também lembrei de dizer-lhe que os textos de Freud poderiam referir-se ora a aspectos mais amadurecidos de uma teoria sempre marcada por um estado de permanente criação, ou ora serem uma das primeiras – ou mesmo a primeira – apresentação de um determinado tema de suas investigações ainda não totalmente claro para o autor, ou tão articulado com o restante da sua obra.

Comentei também que frequentemente vejo colegas recomendarem como leitura inicial de Freud textos nucleares como A interpretação dos sonhos (1900), Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905), Totem e tabu (1913), ou O mal-estar na civilização (1930), entre outros que sem dúvida, são títulos que qualquer profissional que se valha das referências escritas por Freud deva ler e reler ao longo da vida. 

Mas disse também que, não só a complexidade, densidade e abrangência desses textos não correspondem ao que está procurando a grande maioria dos que, como ela, se aproximam de Freud movidos pelo desejo de um primeiro contato com a sua teoria, como também a leitura a sós dos textos mais densos, sem uma aproximação prévia em relação aos fundamentos da psicanálise, dificulta a apreensão pelo leitor de aspectos instigantes e, ao mesmo tempo, indispensáveis para a compreensão da escrita freudiana, aspectos esses que se fariam bem mais acessíveis a partir dos textos didáticos (do grego didaskein, ensinar) que Freud criou com esse fim. 

Enveredar-se sozinho e cedo demais por aqueles textos mais nucleares, lembrei, envolve sempre o risco de um excesso ao qual se referiu Winnicott, um expoente entre os psicanalistas da geração que sucedeu Freud, quando nos falava das pequenas doses, que são pequenas, sucessivas e crescentes faltas e falhas que permitem e estimulam o desabrochar sem trauma dos potenciais do indivíduo. A questão da dose, aquela diferença que o médico medieval Paracelso enxergou entre o remédio e o veneno, e com a qual nós, psicanalistas – confidenciei a ela – nos encontramos permanentemente ao cuidarmos de quem nos pede ajuda. 

Ou dito de outro modo, que começar sozinho a ler Freud pelos textos fundadores pode ser uma experiência marcada por uma profusão de imagens, ideias e afetos à qual faltará o fio condutor que dá sentido a tudo isso. Algo que remete ao que a psicanálise chama de experiência traumática, um ter que processar além daquilo que se consegue e que, portanto, pode fazer o leitor travar porque não teve tempo e espaço para constituir os caminhos de mão dupla que levam ao prazer de ler, de descobrir, e de redescobrir Freud a cada retorno à sua obra, e a cada retorno da sua obra. 

Mas lembrei também que, uma vez tendo sido recebido no território das leituras freudianas com as honras que lhe foram preparadas pelo próprio autor, o leitor solitário terá adquirido muito do que precisa para guiar-se com autonomia nesse território novo, e para encontrar em si legendas que traduzam o que parecerá um filme inédito em uma língua que nunca se ouviu, e no qual – é importante que o iniciante saiba – vai poder encontrar já de saída três das facetas mais marcantes de Freud enquanto escritor.

Uma delas é a do investigador que comunica de forma sistemática as hipóteses, as investidas, as falsas pistas e os resultados de suas pesquisas. E que investiga e comunica valendo-se da linguagem científica do seu tempo. 

Outra dessas facetas, é a do pensador que escreve usando os recursos retóricos e estilísticos refinados que o fizeram merecedor do Prêmio Goethe, uma das maiores honrarias literárias do mundo. E isso porque Freud guiou-se por um ideal estético que, ao mesmo tempo, era também ético: a libertação do leitor através do texto bem escrito. 

E finalmente, há na escrita de Freud a faceta que corresponde a um tipo especial de autor, o “fundador de discurso”, descrito pela primeira vez em 1969 por Michel Foucault em um debate do qual participou, entre outros, o conhecido psicanalista Jacques Lacan. Para Foucault, o fundador de discurso ainda não havia existido até o advento de Freud, porque ele seria um autor cujos raros atributos fazem com que se confunda com os grandes autores literários, com os autores dos cânones das grandes religiões, e ainda, com os grandes fundadores da ciência.

E assim, disse a ela que respeitar as escolhas de Freud quanto ao que dizer a quem começa a lê-lo sozinho, talvez fosse, então, uma forma de manter viva a necessária possibilidade do desejo de voltar a se encontrar com um autor da grandeza de um “fundador de discurso”, e que também teve a grandeza de se dedicar minuciosamente a reconhecer as necessidades essenciais, prioritárias, de quem desconhece esse discurso mas reconhece em si o desejo de conhecê-lo. 

Dessa forma, os textos didáticos de Freud não deixam de ser mensagens endereçadas a ela, minha perguntadora, e no tempo dela, e que para alcançar esse objetivo eles esperam por ela há mais de cem anos.

E disse-lhe ainda, que insisto na necessidade da aproximação sem pressa ou outro excesso em relação a um autor da complexidade de um Freud, porque temos naturalizado a nossa constante queixa da falta de tempo, do excesso de tarefas, da aceleração da vida. E assim fazendo, não percebemos que, se de um lado conseguimos querer ter tudo, e ter agora, de outro, não percebemos que não podemos escapar das consequências dessa nossa recusa daquilo que ela, talvez algum dia, venha a conhecer por castração, e que nos diz: tudo não terás, e muito menos, agora. 

Por fim, contei à minha perguntadora que, entre os textos dos quais Freud se vale para apresentar sua teoria de modo didático, e que poderão ajudar o leitor solitário a tomar as raízes antes de lançar-se pelos diversos e robustos ramos da sua obra, eu começaria citando os textos abaixo (todos facilmente encontráveis na internet):

  • Resumo da psicanálise (1923-1924). Em cerca de 30 páginas, Freud nos leva em um vôo panorâmico pelos aspectos históricos, teóricos e técnicos da psicanálise;
  • Cinco lições de psicanálise (1910). Texto com cerca de 70 páginas, é a transcrição de uma série de conferências proferidas para leigos e especialistas na Clark University, em Massachusetts, durante uma viagem de Freud pelos EUA em 1909;
  • A questão da análise leiga. Conversas com uma pessoa imparcial (1926). Texto com cerca de 70 páginas construído na forma de um diálogo com um interlocutor fictício e leigo, dá ao leitor a possibilidade de experienciar uma conversa intimista com o pai da psicanálise. Ao mesmo tempo, este trabalho se constitui como um dos mais importantes escritos técnicos da década do surgimento da chamada Segunda Tópica;
  • Conferências introdutórias à psicanálise (1916-1917). Reúne uma série de palestras proferidas de 1915 a 1917 a um público de médicos e outros interessados. Embora extenso, com suas cerca de 600 páginas, nele Freud expõe em estilo bastante didático e ordem lógica cerca de 30 dos principais temas da sua teoria, o que faz destes textos uma recomendação incontornável para quem se aproxima desses tópicos, independentemente do nível de familiaridade do leitor com a obra do autor.