Onde está o meu desejo?

Aquele que não deseja, se torna indiferente

Os Nós da Mente

Neste espaço você irá ter um conteúdo onde vamos discutir temas que têm tudo a ver com a sua angústia. O divã será o blog e o psicanalista é o grupo de autores que vão escrever os artigos que irão abordar filmes, livros, músicas e o cotidiano, mas tudo ligado à saúde mental. Você irá perceber que não está sozinho. Vamos dar as mãos para caminharmos na jornada do autoconhecimento. Isso porque esse é um blog de psicanálise para você!

Tanto faz
Tanto faz
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Por Igor Alexandre Capelatto, psicanalista - linktr.ee/igorcapelatto

Em O Estrangeiro (1942), o filósofo Albert Camus intitula o ser humano apático como o homem-absurdo. Absurdo de não se integrar ao mundo, de não fazer relações com os outros, e mais densamente, de não relacionar consigo mesmo. É aquele que recalca os sentimentos, quase que anulando-os, chegando à indiferença. É aquele que não tem desejos. O texto filosófico de Camus, escrito em forma de conto, traz uma reflexão sobre o que leva um ser humano a se tornar indiferente. Mostra como as instituições, as regras sociais, políticas, religiosas chegam para as pessoas de forma injuriosa, como se o outro (ou outros) estivessem decidindo a vida nossa. Ignoramos, de certa forma, a questão de equilíbrio necessário para o bem-estar social (evitar o caos), pois absorvemos essas normas como uma afronta ao nosso ego. ‘Quem é você para decidir algo por mim, se você nem sabe quem eu sou?’. A instabilidade e a fragilidade do ego demandam de uma questão presunçosa: qual é o poder que o outro tem de decidir por mim? – eis que o desejo está latente: a decisão do outro destitui o meu desejo. 

“Desejei não desejar...”  - Sandra de Sá

O ser indiferente é o ser que começa a negar as leis, regras, e principalmente, os sentimentos, pois se sente lesado pelo outro – e para não sentir a dor causada pelo outro, ignora tudo que pode lhe causar algum ‘mal-estar’. Ao ignorar as emoções e refusar o mundo externo, o ser humano está negando a sua condição de sujeito. Não que ele deixe de ser subjetivo, afinal, é sua subjetividade que lhe confere a condição de escolher entre sentir e não sentir (esse antagonismo, esse absurdo – escolher, tomar decisão de ser indiferente, é ter interesse, é justamente o oposto da indiferença), mas ignora toda energia psíquica (emotiva) que lhe dá a condição do equilíbrio psíquico. Ou seja, que se dá a condição de EU. 

O homem-absurdo é aquele que não deseja, ainda que ‘deseje’ não desejar, que deseje ser indiferente. É o ser humano que entra numa rotina automática da vida  – apenas se mantém vivo, mas sem existir – no sentido de pertencer ao mundo, e pertencer a si mesmo: absurdo de ser indiferente, mas não ser (existir). A rotina, seja ela qual for, quando anestesia, ou seja, quando suspende o ser humano dos sentimentos, sedando as emoções, coibindo as pulsões, e interditando o pensamento (o juízo crítico), tira a capacidade de desejar. 

Nós, seres humanos, podemos nos identificar com coisas externas: objetos culturais, filosofias, crenças, valores, os outros. Quando essa identificação passa pela formulação opinião pessoal, ela transverte em algo bom, que nos permite ter juízo crítico, discernir as coisas e por meio do superego, engendrar os limites entre o desejo pessoal e as normas do mundo (os desejos dos outros e as regras necessárias para um bom convívio social, e uma boa integração com a natureza) e ainda assim, ser si-mesmo. Quando não elaboramos nossa própria perspectiva, vivendo no pensamento e desejo de um outro, nossa condição é a de alguém que não julga aquilo que lhe é imposto como ‘filosofia de vida’. É o que, no popular, se chama de ‘maria-vai-com-as-outras’ – é aquele ser programado socialmente, vira marionete na mão de um sujeito autoritário que usa do poder para controlar esses seres ‘não pensantes’. Não é que seres pensantes tenham que contestar as leis, regras, mas, sim, discernir o que o outro está instituindo: se e um desejo apenas desse outro ou se é uma regra necessária para sobreviver evitando o caos. Ser sujeito é viver a angústia de estar na tênue borda entre o EU e o(s) OUTRO(s). Mas não é possível viver sem essa relação com o Outro. 

Na experiência da dor, o sujeito sem abertura para o outro fica entregue ao desolamento, não tendo possibilidade de realizar uma subjetivação possível para aquela experiência. – Joel Birman

Existe um desígnio paradoxal por uma fuga das relações: este é o ser humano. Ele quer estar em vínculo com os outros, criar afetos, todavia emana uma vontade de isolamento, não em uma posição depressiva em si, mas por um escape do sofrimento: evitar que o desejo do outro, ou o outro não correspondente, não permita que o nosso desejo seja realizado. Nessa condição de querer e não-querer relacionar-se, o ser humano se apresenta numa imprevisibilidade emocional: esse é o incômodo da dinâmica do desejo. Talvez por isso, desejar seja tão difícil; talvez por isso, ser sujeito é uma disposição complexa, beirando o impossível. 

“Há duas tragédias. Uma é a de não conseguir o que se quer, e a outra é a de conseguir”. - Oscar Wilde

Diria que o ser humano, tem essa natureza de múltiplas personalidades. E que ela é atenuada com essa inevitabilidade de relação com o mundo, com o Outro. Ser EU num mundo que me coloca em xeque com meu próprio desejo. Como diz Álvaro de Campos (Fernando Pessoa): “sou o intervalo entre o meu desejo e aquilo que os desejos dos outros fizeram de mim”. A afinidade entre o EU e o Outro para a realização do desejo talvez seja aquilo que nós, seres humanos, mais almejamos.

 “O desejo é a essência da realidade” – Jacques Lacan

O desejo é  essência de uma forma, de algo que precisa ser nomeado e busca ser representado. O desejo, na condição de uma coisa inatingível, atribui-se nesse campo paradoxal, de necessidade de aspecto, ainda que não atinja essa ‘materialidade’. Desejo que é uma condição de pensar, agir, imaginar-se no mundo, pretender um modo de ser, ter afinidade com condições humanas (com um outro, com uma relação com o outro (ou outros), com uma profissão, com os estudos e assim por diante). Fazer-se sujeito, porém integrado ao mundo. Mas o desejo, ganhou, com a estruturação social dos seres humanos, uma falsa imagem tangível: substituem-se as condições humanas, por objetos – ter um carro, ter uma casa, fazer uma viagem. Este é o que chamo de perigo da confusão entre desejo e prazer. Ao não distinguir o prazer do desejo, o objeto de prazer acaba ‘substituindo’ o desejo. 

Desejo é, resumindo, aquilo que nos faz ser algo, vivenciar algo, ter uma importância (satisfazer-se e oferecer-se a outro, ao mundo). Talvez possamos, em síntese, parafraseando Descartes (“Cogito, ergo sum” [Penso, logo existo]), definir a dinâmica do desejo como Volo ergo sum (Desejo, logo existo).