O Transgeracional: a herança de nossos antepassados em nossas vidas

Os Nós da Mente

Neste espaço você irá ter um conteúdo onde vamos discutir temas que têm tudo a ver com a sua angústia. O divã será o blog e o psicanalista é o grupo de autores que vão escrever os artigos que irão abordar filmes, livros, músicas e o cotidiano, mas tudo ligado à saúde mental. Você irá perceber que não está sozinho. Vamos dar as mãos para caminharmos na jornada do autoconhecimento. Isso porque esse é um blog de psicanálise para você!

O Transgeracional: a herança de nossos antepassados em nossas vidas
O Transgeracional: a herança de nossos antepassados em nossas vidas
Divulgação

Por Simone Pontes, Psicanalista - @simone_galvao_pontes

A família desempenha um papel fundante para cada um dos seus membros na sua construção subjetiva, sendo o primeiro contato com o meio cultural e social. Nela, circula uma história através do discurso familiar, os ditos e os não ditos e a transmissão psíquica geracional como legado a ser simbolizado, transformado e apropriado pelo sujeito. 

A constituição de um sujeito se baseia na sua origem, nas histórias e nas fantasias que habitam e compõem a sua narrativa familiar, além de uma rede de relações que o antecedem e o ultrapassam. A família nutre psiquicamente o sujeito desde o seu nascimento e até mesmo antes da sua gestação, preparando um lugar simbólico para recebê-lo, desejando-o e lançando-o ao mundo para produzir a sua história.

Para compreender a transmissão do psiquismo entre sujeitos e entre gerações, é fundamental compreender a relevância do papel do outro na formação do psiquismo do sujeito. Freud declara que o indivíduo é, em si mesmo, seu próprio fim, mas se encontra vinculado a uma corrente geracional como elo de transmissão, sendo beneficiário e herdeiro da mesma.

Transmitir é fazer passar um objeto de identificação, um pensamento, uma história ou afetos de uma pessoa para outra, de um grupo para outro, de uma geração para outra. Quando se fala de transmissão psíquica de uma geração para outra, existem duas modalidades básicas: a intergeracional e a transgeracional

Nas transmissões intergeracionais, ocorre entre as gerações, havendo uma distância, um espaço entre o transmissor e o receptor, preservando-se os limites e as bordas da subjetividade. O sujeito não é somente usufruidor e herdeiro, mas também se torna proprietário do que lhe é transmitido. 

É um trabalho psíquico de elaboração que diz respeito ao sujeito e ao grupo familiar, que favorece modificações e conduz a uma diferenciação, a uma evolução entre o que é transmitido e o que é herdado. Esse trabalho permite a cada geração diferenciar-se em relação às outras, perceber e respeitar as diferenças entre elas, tornar-se um elo e inscrever cada sujeito num grupo.

A transmissão psíquica intergeracional é suporte para a estruturação do sujeito, onde será constituída por fantasias, imagos, identificações, organizando uma história familiar, onde as tradições, as culturas, a filiação ou um sobrenome mostre a força de coesão do grupo familiar.

Esse tipo de transmissão psíquica entre gerações parecem ser bem-sucedidas, mostrando que a mãe cumpriu seu papel a contento investindo adequadamente seu bebê, sem invadir o campo da intersubjetividade com ansiedades ou lutos mal elaborados de sua história ou pré-história.

A transmissão transgeracional, ao contrário, é invasiva e ocorre através dos sujeitos e gerações. É uma transmissão psíquica geracional que, do ponto de vista da natureza e da essência do elo criativo entre as gerações, se tornou defeituosa, foi interrompida. As histórias de seus personagens estão colapsadas, coladas umas às outras, estão sob o predomínio da repetição e do narcisismo. 

Várias situações se constituem em traumas não elaborados, transformados, ou historizados como lutos não elaborados, segredos, histórias com lacunas, histórias de violência, vazios, migrações. Assim, poderão ser inauguradas, na história de muitos pacientes, as transmissões transgeracionais.

O trauma embora tenha se dado com o progenitor, é transmitido ao descendente sem que nunca tenha sido falado. Há um risco constante de que um traumatismo psíquico não simbolizado seja repetido depois de várias gerações. 

Esse trauma não elaborado tem poder para interromper a transmissão intergeracional, aquela que se dá entre os sujeitos. Com isso, passa a existir outra, dessa vez defeituosa, a transmissão transgeracional, que ocorre através dos sujeitos, atravessando o psiquismo, invadindo-o violentamente, numa passagem direta de formações psíquicas de um sujeito a outro, de uma geração a outra, sem preservação dos espaços subjetivos ou intersubjetivos.

A transmissão psíquica transgeracional, segundo essa compreensão, envolve a transmissão de um material psíquico que não pode beneficiar a geração seguinte, porque está em suspensão, num estado em que não há a possibilidade de simbolização e integração de seus conteúdos. 

Trata-se de algo que é transmitido de um espaço psíquico a outro, sem possibilidade de elaboração. Este tipo de transmissão é considerado alienante e não estruturante, impedindo a singularização do herdado, pois se impõe em estado bruto aos descendentes.

As gerações futuras têm que lidar com uma experiência traumática que não é própria, mas sim dos pais, de quem dependem psiquicamente. Serão possíveis prisioneiros de sua pré-história. 

A questão não é a gravidade objetiva do traumatismo, mas sim a impossibilidade para o sujeito de elaborá-la. É necessária uma compreensão dos efeitos das estruturas psíquicas dos pais sobre os filhos, verificando os registros dos traumatismos específicos que podem tê-los afetado, podendo vir a se expressar mais tarde por doenças físicas ou psíquicas nos descendentes.

Esses conteúdos, favorecem o surgimento de sintomas. Os segredos consistem em histórias não verbalizadas e repetitivas, que intrigam a nova geração, cabendo a esta o trabalho de se individualizar e simbolizar os segredos que representam a história familiar. 

Cabe a nós, psicanalistas, por meio de uma abordagem terapêutica, realizar um trabalho que permita a elaboração dos lutos, dos não ditos, contribuindo para um nascimento psíquico não alienado nas crianças e nas famílias, ajudando no difícil processo da transformação de heranças transgeracionais em novas heranças intergeracionais.

Na clínica, nos confrontamos com os efeitos da transmissão transgeracional manifestada no sofrimento dos sujeitos, aprisionados em sua incapacidade de simbolizar seus legados. Nossa tarefa, enquanto analistas, é reconstituir o percurso simbólico da transmissão e favorecer a elaboração da herança.

É importante que, no processo analítico, o sujeito identificar em si modalidades de funcionamento que repitam os funcionamentos familiares, identificar as defesas levantadas frente ao medo das invasões transgeracionais, não sendo mais o sujeito passivo sobre o qual são colocadas as impressões de outros e sim aquele que simboliza, transforma e apropria-se de si enquanto sujeito. 

“Aquilo que herdaste de teus pais, conquista-o para fazê-lo teu”. Goethe, Fausto.