
Os Nós da Mente
Neste espaço você irá ter um conteúdo onde vamos discutir temas que têm tudo a ver com a sua angústia. O divã será o blog e o psicanalista é o grupo de autores que vão escrever os artigos que irão abordar filmes, livros, músicas e o cotidiano, mas tudo ligado à saúde mental. Você irá perceber que não está sozinho. Vamos dar as mãos para caminharmos na jornada do autoconhecimento. Isso porque esse é um blog de psicanálise para você!

Por Igor Alexandre Capelatto, psicanalista - linktr.ee/igorcapelatto
“Não tinha pedido café, mas já que estava ali, o coronel tomou”. - García Márquez.
O que nos leva a realizar coisas que não desejamos? Fazer algo que não tínhamos planejado? Por que uma coisa inesperada, pelo simples fato de estar lá, nos faz interagir com ela? Por que o café, mesmo não tendo sido pedido, pelo simples fato de estar lá, na nossa frente, nos faz bebê-lo? E não somente bebê-lo, mas saboreá-lo, e, às vezes, até pedir mais um?
Esse mistério humano, que envolve nossa condição de ser sujeito, nos faz escoar do desejo subjetivo – é uma força externa que nos atinge, fazendo-nos agir em conformidade com as coisas (objetos, sentimentos, situações) que nos são apresentadas. É o desejar um determinado carro por ele ter sido incessantemente nos apresentado (e de modo sedutor)? O café seduz, a xícara, a fumaça, o cheiro... o simples fato de estar lá – e nossa mente estabelece essa conexão entre o objeto e a sua função (o café servido na xícara tem a função de ser bebido).
Ao estabelecer essa conexão, propomos a nós mesmos a necessidade de realizar tal função. E, nossa mente entende essa função como algo prazeroso – não fui obrigado a tomar o café; ele apenas apareceu lá e eu senti vontade de tomá-lo. Eu poderia ter escolhido devolvê-lo, dizer que não pedi pelo café. Talvez eu estivesse querendo um chocolate quente ou um chá, talvez nem quisesse beber nada. Mas essa energia que emana e atinge nossos sentidos nos move ao desejo. E então eu tomo o café que nem era para estar a minha frente.
Lacan, quando realizou o seminário “O desejo e sua interpretação” trouxe a ideia de que, segundo Jacques-Alain Miller, “o desejo não é uma função biológica; que ele não é coordenado a um objeto natural; que seu objeto é fantasístico”. Sendo ‘fantasístico’, o desejo, ainda que atuado, na prática, no real, está num campo simbólico, dos sentimentos, da imaginação. Assim é preciso interpretá-lo. O desejo nos move diante de uma escolha, uma escolha que precisa ter um sentido – o sentido de uma profissão, o sentido de uma relação, o sentido de uma mudança.
O neurologista Antonio Damásio diz que a essência da decisão consiste em escolher uma opção de resposta. Diante da xícara de café, temos que tomar uma decisão, mesmo que não fosse nossa intenção. Ou decido tomar o café, ou decido não tomar. Não fazer nada, viver a ideia do ‘tanto faz’ é, por excelência, também uma decisão: a de não fazer nada. Ou seja, sempre estamos dispostos a tomar decisões. A xícara de café que foi colocada “ao acaso” na minha frente me faz decidir entre tomar ou não. Ela provoca essa função decisiva. O coronel do romance de García Márquez decidiu tomar. Ainda que o café, no caso, desta personagem, o levou a um fim trágico. Mas ele não tinha como saber. Naquele instante tudo que podia fazer (dentro do que ele sabia) era decidir entre tomar ou não o café. As decisões nos compelem urgência em optar por uma resposta.
Eis o paradoxo do desejo. Segundo Lacan, o impulso diante do desejo é que faz com que os desejos sejam mal interpretados. É o adolescente que pensa que quer fazer determinada faculdade, pelo deslumbre que tem ao conhecer a área, mas a conhece pelas resultantes de sucesso (por exemplo, ver um médico bem-sucedido, e se interessa por cursar medicina), não entrando em contato com as dificuldades que terá que enfrentar na área. O mesmo vale para desejos como o de ser pai ou mãe que, muitas vezes, contemplam as felicidades com o bebê, sem pensar nas situações como de doenças, birras, que esse ser vai crescer, vai ter de ir para escola, vai se tornar adolescente etc; ou para o desejo de uma relação de casal, onde se pensam nos momentos afetivos de prazer sem pensar que vão conviver juntos também nos afazeres das obrigações do cotidiano, dos problemas do mundo.
“É a interpretação que reconhece o desejo subentendido e o exibe: cada vez que nos esforçamos para interpretar um sonho praticamos a interpretação de reconhecimento.”. – Jacques-Alain Miller.
Interpretar o desejo é também reconhecer-se no “eu quero isso, mas estou disposto a passar por essas coisas ‘ruins’ para atingir meu objeto de desejo?”. E reconhecer qual é o desejo de fato. Desejo não é impulsivo, ele é fruto de uma “vontade”, mas uma vontade que precisa ser elaborada. É um projeto, senão, acaba sendo apenas fantasia e o prazer deste desejo acaba vindo de mãos dada com o desprazer.
E quando atuamos no impulsivo da escolha e damos conta que aquilo que achamos ser nosso desejo na verdade não tem objeto de desejo algum, a sensação de estar vivendo algo “irreal” acontece. Faço algo, mas não me sinto incluído neste algo. Estou numa profissão que não me satisfaz – por exemplo, como diz um paciente na clínica, “atuo como médico mas não me sinto médico”. Ou estou num relacionamento onde há prazer, mas não existe uma história sendo construída (desejo), ou tenho um filho mas não me sinto pai/mãe.
Se Lacan tivesse interpretado o romance de Garcia Marques, talvez ele fizesse a pergunta: será que o coronel tomou de fato o café?.
*Há 65 anos atrás, em julho de 1958, Lacan ao falar sobre o Inconsciente, estende o tema trazendo um olhar sobre o “amar a ti mesmo” e assim, inicia um tema importantíssimo sobre o desejo na perspectiva do “objeto do desejo”. Este meu artigo fará parte de uma trilogia sobre a perspectiva de Lacan a cerca do desejo, na qual abordo a natureza do desejo humano, ao princípio de [des]prazer e a interpretação do desejo (tema que Lacan aborda no seminário que inicia em setembro de 1958).