Neste espaço você irá ter um conteúdo onde vamos discutir temas que têm tudo a ver com a sua angústia. O divã será o blog e o psicanalista é o grupo de autores que vão escrever os artigos que irão abordar filmes, livros, músicas e o cotidiano, mas tudo ligado à saúde mental. Você irá perceber que não está sozinho. Vamos dar as mãos para caminharmos na jornada do autoconhecimento. Isso porque esse é um blog de psicanálise para você!
Por Igor Alexandre Capelatto, psicanalista - linktr.ee/igorcapelatto
Era uma quarta-feira, por volta das 19horas. Dia nublado, ameaçando chover. Frio. Vento assoviando. Aula iniciando. Eu estava levando aos alunos um pouco do que é a clínica de Lacan. Começam perguntando por que é difícil entender os seminários de Lacan. Eu digo que os seminários são transcrições de suas aulas, e não textos feitos para a leitura e compreensão. Um aluno me pergunta sobre o texto do Lacan em que ele fala de A Origem do Mundo (obra de Courbet). Eu pergunto se ele conhece a pintura e a história de Lacan com esta pintura. Ele não tinha conhecimento. Havia lido o texto do seminário.
O texto não traz nas suas diversas edições (das originais francesas às traduzidas em inglês, espanhol, alemão, português) a imagem do quadro e como Lacan chegou a essa obra. Não conta que o quadro foi adquirido por Lacan, não conta do jantar em que o cunhado de sua esposa Sylvia Bataille, André Masson, um artista importante do movimento Surrealista, por solicitação da prorpia Sylvia, fez uma arte para cobrir o quadro.
Há todo um significado nestes atos, nesta história, na vida de Lacan. A experiência de vida de Lacan nos ensina muito do que ele transformou em teorias aplicadas na prática clínica.
No livro da Catherine Millot, ela conta dos dias que passeou com Lacan em alguns museus. A explicação mais nítida sobre a teoria de Lacan sobre o Desejo está neste livro intitulado A Vida com Lacan (2017). Resume em poucas páginas o que é Desejo, a Linguagem do Desejo, a relação do Eu com o Outro e a Clínica do Desejo, a partir da experiencia do dia a dia com Lacan.?Catherine conta que “conhecer Lacan ajuda a compreender, por exemplo, sua teoria do desejo. Ele a encarnava, era ele mesmo eminentemente um homem de desejo, um desejo livre de entraves neuróticos, um desejo ‘decidido’, livre das ambivalências que nos enreda”. Ela afirma que sua intenção não foi fazer grandes revelações, mas apresentar ao leitor um “retrato mais fiel possível e que lhe faça justiça” (Revista Cult, outubro de 2017).
Em Um encontro com Lacan (2011), documentário de Gerárd Miller, Suzanne Hommel, uma paciente de Lacan, conta sobre acordar às cinco da manhã, horario que a Gestapo invadia as casas para procurar os judeus. Lacan levanta de sua poltrona e vai até ela e faz um gesto de carinho em seu rosto dizendo: Geste à peau! (Um carinho na pele literalmente). A dor ainda está lá, mas o gesto permitiu ressignificar o trauma. É a experiencia dela com Lacan que nos ensina sobre a clínica do gesto.
Estou trazendo Lacan e estas observações da experiência do psicanalista francês, para pontuar três tópicos que sempre surgem na psicanálise. Primeiro, cabe aqui na coluna, pensar que quando falamos em psicanálise, quem não é da área sempre pergunta sobre quem é Freud, quem é Lacan, quem é Françoise Dolto e assim por diante. Estas informações estão no Google, estão no Wikipedia e em inúmeros vídeos, sites e livros. Todavia, eu gosto, de abrir minhas aulas e palestras quando trago Jacques Lacan, dizendo que Lacan é o sujeito que fazendo uma multidisciplinaridade entre as áreas que envolvem o ser humano, trouxe a experiência para a clínica – a vida, a história, a cultura, as narrativas de cada sujeito. Lacan desenvolveu teorias para academicamente dar conta de explicar a prática e poder atualizar os temas que Freud trazia com intensidade e maestria. Lacan não renovou apenas o modo de entender os temas psicanalíticos, ele deu um novo lugar do analista e do analisando, na prática.
Betty Milan, no seu encontro analítico com Lacan, descrito em Lacan ainda: testemunho de uma análise(2021), conta que Lacan modificou a prática clínica, quando percebeu que algumas regras estabelecidas pela Associação Internacional de Psicanálise, não faziam jus ao discurso do analisando, não faziam jus ao sujeito, como o tempo da sessão. Diz a lenda que ele terminava as sessões em cinco minutos, diz a história de quem viveu com ele que havia sessões de mais de uma hora. O que definia o tempo era quando o essencial havia sido dito. Essa era a prática dele.
Quando me perguntaram por que eu coloco na primeira aula do curso “aqui não vamos ler Lacan”, digo que é uma provocação. A gente lê Lacan, mas lê alguns textos de “Escritos” (1998) e “Outros Escritos” (2003), os seminários ficam para quem quer aprofundar. Mas a gente lê sobre o Lacan e assim aprendemos sobre seus principais temas e prática. Lacan não é teoria, eu digo. Lacan é o homem da prática, o sujeito que desenvolveu ideias e maneiras psicanalíticas estando no ateliê do Picasso ao lado de Hiddergger, Simone de Beauvoir, Sartre, Camus entre outros existencialistas, durante a leitura e análise da peça de teatro escrita por Pablo Picasso intitulada “Desejo pego pelo rabo” (1944), ou em um jantar na sua casa de veraneio com Marcel Duchamp e a esposa Teeny Sattler, ou durante uma visita pelo Museu d’Orsay.
O segundo tópico e pensar que Lacan nos permite ver sujeito Lacan, teoria Lacaniana e prática Lacaniana numa integridade, que é exatamente como vejo a psicanálise na sua prática clínica: ver o paciente na sua integridade. Certa vez para um programa de rádio, sua filha Judith e o marido, Jacques-Alain Miller, contam que por causa dos analisandos e amigos de Lacan que contam sobre suas vivencias e encontros com o psicanalista que outros psicanalistas passaram a trazer suas histórias como meio de ensinar psicanálise. Há quem diga que a autobiografia de Melanie Klein foi dita pela mesma como a melhor forma de explicar transferência e contratransferência.
Por fim, o terceiro tópico é que por meio destas experiencias narradas, aprendemos com Lacan que a psicanálise não se resume a um divã, uma poltrona e os temas como “id, ego, superego”, “Complexo de Édipo”, “Narcisismo”, “Pulsões”, colocados na analise do discurso, mas que o discurso está em tantas outras instâncias e relações semióticas (pensar os signos em todas as suas possibilidades de manifestação e assim poder ver o discurso do analisando, sem excluir os temas psíquicos, de forma subjetiva, de acordo com o próprio sujeito). A análise de “A Origem do Mundo” é um texto que nos ensina sobre isso: a ver o que está por detrás da imagem em si.
Assim, para os que tem interesse em conhecer a psicanálise de Lacan, para os estudiosos de Lacan, e para os psicanalistas atuantes, eis aqui uma sugestão de leitura para tal afinco com o psicanalista francês:
- O dia em que Lacan me Adotou: Minha Análise com Lacan – Gérard Haddad (2003)
- Jacques Lacan: Esboço de uma vida, história de um sistema de pensamento – Elisabeth Roudinesco(2008)
- A vida com Lacan - Catherine Millot (2017)
- Lacan ainda: Testemunho de uma análise - Betty Milan (2021)?