Os Nós da Mente
Neste espaço você irá ter um conteúdo onde vamos discutir temas que têm tudo a ver com a sua angústia. O divã será o blog e o psicanalista é o grupo de autores que vão escrever os artigos que irão abordar filmes, livros, músicas e o cotidiano, mas tudo ligado à saúde mental. Você irá perceber que não está sozinho. Vamos dar as mãos para caminharmos na jornada do autoconhecimento. Isso porque esse é um blog de psicanálise para você!
Por Anna Silvia Rosal de Rosal, psicóloga com formação em psicanálise e doutorado pela PUC SP - @annasilviarosalrosal
No livro A casa e a rua, publicado em 1985, o sociólogo Roberto da Matta mostrou como a sociedade brasileira concebe ambos os espaços. Na verdade, bem mais que espaços geográficos, são ambientes de ação social. Verdadeiras entidades morais, a casa e a rua permitem e proíbem comportamentos que seriam adequados para cada espaço, de acordo com o brasileiro retratado por Da Matta.
O autor mostra o modo como o brasileiro acomoda suas contradições. A casa é (ou era) compreendida como abrigo seguro, espaço de intimidade, privacidade e segurança – praticamente um lugar sagrado. A rua, por sua vez, configura o ambiente permissivo. Chancela as aventuras, os riscos e compulsões, a liberdade e as transgressões que não podem se manifestar no lugar sacro. Fazendo um exercício de aproximação com a psicanálise, podemos tomar o conceito moral de Da Matta como o “equivalente” a cisão, a saber: um mecanismo de defesa do ego contra a angústia, ameaça ou sentimento de desamparo - conceito largamente usado na obra de Melanie Klein.
O cidadão brasileiro – também sujeito do inconsciente – revela cada uma de suas facetas no espaço que julga apropriado. Aqui, faço um parêntese para questionar qual é o lugar indicado para lidar com agressividade? A casa, a rua ou o divã? Retomando o raciocínio, tais contradições indicam que esse brasileiro tenta organizar sua fragilidade por meio da cisão. Assim, dirige a pulsão de vida (força construtiva, afetiva, protetora) ao lar e a pulsão de morte (representante da agressividade e destrutividade) à rua. Os aspectos primitivos que configuram esse funcionamento psíquico indicam como percebe o outro, o que inclui “a mulher de casa” e “a mulher da rua”. Se tem um homem em casa e outro na rua, consequentemente duas mulheres são convocadas, a da casa e a da rua. A esposa, sacra, mãe de seus filhos, ocupava o lugar de segurança: a casa. Na rua, a amante, com quem este homem se permitia viver uma sexualidade pujante, prazerosa. Por muito tempo, nossa sociedade conviveu de modo relativamente tranquilo com essa divisão. Era comum o tradicional chefe de família (termo antigo) manter um ou mais relacionamentos extraconjugais e assim sustentar a posição em questão.
Hoje não é mais assim. O que mudou? O homem evoluiu em relação ao modo como entende sua sexualidade? Desprendeu-se da ideia retrograda de masculinidade? Infelizmente, o crescimento da violência doméstica e do feminicídio no país sugerem outro caminho. O Brasil está entre os países com maior índice de homicídios femininos. De acordo com o mapa da violência (2015), o país ocupa a quinta posição em um ranking composto por 83 países. A violência contra a mulher ocorre, principalmente, no ambiente doméstico (mas, não exclusivamente) e é cometida pelo parceiro ou ex-parceiro.
Essa realidade aponta para o fracasso da cisão. O agressor já não sustenta tal divisão. A ideia da mulher como propriedade ou sustentáculo da masculinidade continua a ameaçar a frágil masculinidade como também coloca em risco a integridade física e psíquica da mulher brasileira. O que ainda falta para o homem agressor fazer as pazes com seu mundo interno e, então, lidar com a agressividade de um modo construtivo? Ao invés de dirigi-la a mulher quem sabe usar essa potência para enfrentar os preconceitos que herdou. Entender melhor a masculinidade e desatá-la da força bruta pode ser um caminho. Para finalizar, sei que não temos divã para todos, mas a sociedade oferece outros recursos que podem ser efetivos.