“Isso não é psicanálise!!”

Mas o que seria a “verdadeira” psicanálise?

Os Nós da Mente

Neste espaço você irá ter um conteúdo onde vamos discutir temas que têm tudo a ver com a sua angústia. O divã será o blog e o psicanalista é o grupo de autores que vão escrever os artigos que irão abordar filmes, livros, músicas e o cotidiano, mas tudo ligado à saúde mental. Você irá perceber que não está sozinho. Vamos dar as mãos para caminharmos na jornada do autoconhecimento. Isso porque esse é um blog de psicanálise para você!

“Isso não é psicanálise!!”
“Isso não é psicanálise!!”
Reprodução/Freepik

Por Yara de Barros – psicanalista - (@yara.debarros)

Tenho ouvido essa intrigante afirmação com certa constância. O mais divertido é que na frase seguinte, o suposto “dono da psicanálise verdadeira”, diz algo que, na cartilha de outrem, definitivamente não seria considerado “a psicanálise verdadeira”.

Podemos dizer que psicanálise é o tratamento pela fala, a investigação do inconsciente. , mas me diz o que você entende por investigação e o que exatamente você entende por inconsciente? Percebe? Difícil encontrar uma única explicação, mais difícil ainda encontrar unanimidade.

Psicanálise é por princípio disruptiva. Lá pelos idos de 1880 o distinto doutor Josef Breuer, médico e fisiologista austríaco, rompeu com o script ao perceber que, por meio de um método inusitado, hipnose e a “terapia da conversa” estava alcançando resultados satisfatórios no tratamento de Bertha Pappenheim, a famosíssima Anna O., paciente ícone da fundação da psicanálise. Freud se empolga e embarca entusiasmado na ousadia, e Breuer desembarca anos depois ao discordar de Freud sobre a veracidade das memórias da primeira infância explicadas pelos pacientes.

Freud segue valente e determinado, investigando e tecendo sua disruptiva “psicologia profunda”. Forma seu séquito de discípulos, se reúnem às quartas feiras entre charutos e anéis com sinete de fidelidade à causa psicanalítica. Mas... logo surge um maldito “disruptor”, Alfred Adler que contraria o mestre e defende a força do eu contra a natural debilidade do eu freudiano. Traição! Mas pior, foi o que fez Jung, príncipe herdeiro da causa, ungido por Freud em pessoa e em quem Freud depositava todas as esperanças e inconfessáveis fantasias. Jung criou seu próprio conceito de inconsciente, blasfêmia pura que Herr Doktor nunca perdoou.

Sandor Ferenczi foi outro discípulo preferido, que alçou voo com as próprias asas, ainda que machucadas pelas tesouradas do mestre Freud que o chamava de o seu “Paladino”, seu “Grão-vizir Secreto” mas que não tolerou as novidades disruptivas que o húngaro trouxe para a clínica. Aliás, Freud era amigo & analista de Ferenczi, que era analista da sua própria enteada, por quem sentia desejos poucos paternais. Mais “psicanalise-não-verdadeira”, impossível

Da escola húngara veio a “açougueira genial”, apelido bem-humorado que Lacan deu à austríaca Melaine Klein com quem dividia o fato de terem estendido a clínica das neuroses a uma clínica das psicoses. Principal expoente da segunda geração psicanalítica mundial, Klein teve que renunciar ao seu desejo de ser psiquiatra pois não pôde arcar com os custos da formação em medicina. No ano de 1914, caiu-lhe nas mãos o texto de Freud “Sobre os Sonhos”, MK fica totalmente enfeitiçada e o resto é história. Esta dona de casa divorciada e com três filhos transformou totalmente a doutrina freudiana clássica, o que fez dela fundadora de escola. O kleinismo é pura disrupção. E falando nisso, madame Klein analisou seu próprio filho e escreveu um livro sobre isso, trocando o nome dos envolvidos, lógico, para preservar o, digamos, encantamento da “psicanálise verdadeira”.

Falemos agora do tio Winnie. Donald Woods Winnicott era, antes da psicanálise, um pediatra e, antes disso, um espírito independente. Foi o fundador da psicanálise de crianças na Inglaterra, antes do vulcão Klein cuja especialidade era neste departamento. Na época do embate das Grandes Controvérsias (1942 a 1944 - partidários de Anna Freud versus os de Melanie Klein), Winnicott escolheu o Grupo dos Independentes e nesse território desenvolveu sua concepção pessoal e original da relação de objeto, do self e do brincar. Disruptivo. Provavelmente escutou muitas vezes “isso não é psicanálise!!”.

Chegamos a ele: Jacques-Marie Émile Lacan, que começou defendendo um “retorno a Freud”, e acabou sugerindo uma nova terapia, que explora o inconsciente não para escavar o passado, mas para propor novas formas de viver o futuro. Lacan forjou novos conceitos e inventou uma técnica original de análise. Pretendendo-se mais freudiano do que todos os outros, ainda assim, Lacan e seus discípulos foram expulsos da IPA, lugar sacrossanto da legitimidade freudiana, onde provavelmente se outorgavam e, aparentemente ainda se outorgam, detentores da verdadeira psicanálise.

Se nem o Freud, o próprio pai da psicanálise, escapou de aplicar a psicanálise não verdadeira (analisou a própria filha, uma irmã, amigos, flexibilizou o setting, palpitou, sugeriu e encaminhou tratamentos), o que dirá do resto da humanidade? 

Sempre que vejo alguém apontando o dedo e dizendo “isso não é psicanálise”, tenho vontade de perguntar: e alguém sabe realmente o que é? E precisa saber? O que muda na equação o fato de ser a “verdadeira” psicanálise ou não? Fico com o filósofo e sociólogo alemão Walter Benjamin: “Que as coisas continuem como antes, eis a catástrofe! ”