Do Homo Sapiens ao Homo Office Digitalis – A transformação digital a domicílio

A sensação de mais trabalho é real por conta da carga psíquica adicional por tantos agentes ansiogênicos

Os Nós da Mente

Neste espaço você irá ter um conteúdo onde vamos discutir temas que têm tudo a ver com a sua angústia. O divã será o blog e o psicanalista é o grupo de autores que vão escrever os artigos que irão abordar filmes, livros, músicas e o cotidiano, mas tudo ligado à saúde mental. Você irá perceber que não está sozinho. Vamos dar as mãos para caminharmos na jornada do autoconhecimento. Isso porque esse é um blog de psicanálise para você!

O mal-estar psíquico na era da tecnologia
O mal-estar psíquico na era da tecnologia
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Márcia Uehara, psicanalista e empreendedora em tecnologia ( @marcia.uehara)

Teams. Fraldas. Google Meet. Panela de pressão. Zoom. Cachorro do vizinho. WhatsApp. Solidão. Power BI. Moletom. Agile. Palavras constantes no vocabulário do típico trabalhador que migrou para o trabalho em casa, o Homo Office Digitalis.

Nos últimos anos, muitas pessoas tiveram a vida profissional enquadrada na sala de jantar ou na sacada de seus apartamentos. De lá atendem clientes, elaboram projetos, participam de reuniões e interagem com os colegas, muitas vezes com câmeras fechadas. Aquilo que prometia ser a realização de um sonho e proteção, trouxe a sua dose de estresse e ansiedade. Delícia e dor. Bônus e ônus. Prós e contras. Vantagens e desvantagens.

Luzes diversas pululam o dia todo nas telas. Ora o WhatsApp piscando, ora os e-mails chegando, ora a chamada remota. Um tsunami de notificações. Além disso, paira o risco de uma reunião às 20h com a matriz ou mensagens de áudio durante a noite, porque o sistema parou. Não que isso não acontecesse antes, mas não acontecia na sala de jantar ou na cozinha com a  air fryer com batatas na potência máxima. 

Não acontecia tendo que entrar numa reunião com o microfone ligado e o filho aos prantos pedindo colo ou a diarista passando aspirador de pó. Não acontecia com a panela de pressão chiando e o porteiro ligando porque a moto do Ifood chegou. Tudo ao mesmo tempo, junto e misturado.

Como não sucumbir à tentação de dar um tablet para o filho parar de chorar na hora da reunião, a famosa “chupeta eletrônica”? Como exigir que a limpeza seja feita sem barulho? Como controlar o volume animado das vozes ao fundo ou o funk do apartamento vizinho?

Muitos relatam trabalhar bem mais em comparação ao trabalho presencial. Mesmo com carga horária igual, a sensação de mais trabalho é real por conta da carga psíquica adicional por tantos agentes ansiogênicos: latidos, cortadores de grama, eletrodomésticos, TV ligada, conversas paralelas, café solitário, ausência de almoço no self-service com os colegas, discussões familiares outrora reprimidas, interfone que toca.

Os que têm casa cheia reclamam dos ruídos domésticos. Os que são sozinhos, reclamam da solidão. Os que demoravam no trânsito agora dormem horas a mais, porém reclamam da falta do contato físico e conversas olho no olho com os colegas. Muitos sentem nomofobia, checam o celular a todo momento e têm pavor de ficar sem bateria, incomunicáveis. Levam o aparelho ao banheiro para unir o útil ao fisiológico. Checam as notificações assim que saem da cama pela manhã. Caso tenham insônia, checam-nas de madrugada também.

Alguns perceberam que seus relacionamentos estavam falidos somente quando se viram vinte e quatro horas cara a cara com aquele estranho familiar. A presença excessiva jogou luzes sobre a ausência afetiva

 A vida a dois estremeceu. Outros perderam a paciência com as crianças. O home office trouxe boletos psíquicos a pagar.

Não bastasse tudo isso, num rolar de telas para tentar relaxar, o LinkedIn traz a sensação de se estar sempre defasado perante o mercado, o Instagram escancara a vida glamourosa que os simples mortais não têm e o Tik Tok traz dancinhas e vídeos que proporcionam uma sensação de alegria líquida e fugidia. 

Muitos se perceberam querendo a conveniência do lar, mas com o prazer da convivência com os outros. Evitar o trânsito, mas fazer coffee break com a equipe. O melhor dos dois mundos num mundo idealizado, utópico.

Como sujeitos desejantes, muitas vezes agimos assim. Desejamos aquilo que não temos e quando o conseguimos não o desejamos mais e passamos a desejar outra coisa. O sentimento de vazio e a falta aparecem. A falta, sempre ela, nos lembrando de nossa incompletude e nos fazendo seguir buscando e desejando na vida como um motor. Isso quando não nos paralisa

A procura pela Psicanálise explodiu. Ansiedade, depressão, insônia, síndrome do pânico, burnout, são queixas que lotam os nossos divãs, agora também na versão online (sim, nós psicanalistas também estamos nos transformando digitalmente). As pessoas buscam por alívio para as suas angústias contemporâneas, a causa dos afetos que as circunstâncias atuais suscitam. Puro mal-estar na civilização digital. 

A Psicanálise vai apontar que o caminho é cada um se implicar com o seu desejo, pessoal e intransferível. Parar de delegar sua satisfação e felicidade ao objeto imaginário que lhe falta, externo a ele, um alguém ou um algo. Haver-se com o próprio desejo é o compromisso mais genuíno que se pode firmar consigo mesmo, mesmo que não consiga expressá-lo em palavras, mas que reflete na jornada de sua vida, na caminhada cotidiana onde vai deixando suas pegadas, agora também digitais. A Internet é a rua do mundo, onde agora a sua vida se desdobra em verso e metaverso.

Freud dizia que uma pessoa com boa saúde mental é aquela capaz de amar e trabalhar. 

Ser capaz de amar (e ser amado, se possível) e trabalhar (no que gosta, de preferência): dois bons sinais de que as coisas estão caminhando relativamente bem. Seja no presencial, no remoto ou no híbrido. Acompanhado ou solitário. Aterrado ou na nuvem. Rastreado e filmado pelos algoritmos de Inteligência Artificial, talvez monitorado por softwares de tracking, checando se você está online, produzindo...no lar, ops, office. 

A Psicanálise está em alerta e operante, ajudando as pessoas a se posicionarem neste novo mundo, nesta nova civilização virtual. O Brasil é o país mais ansioso do mundo e o mais depressivo da América Latina. A saúde mental entrou na pauta de empresas e trabalhadores, pois ansiolíticos e antidepressivos passaram a fazer parte do vocabulário cotidiano. Não raro eles estão na nécessaire ao lado de batom e fio dental. Eles são peças importantes para se atravessar uma crise, uma fase e em alguns casos, a vida toda. Devem sempre ser prescritos por médicos habilitados mediante avaliação criteriosa . Porém, é sabido que eles tratam dos sintomas e não necessariamente das causas dos sofrimentos. 

Há que se buscar os atores principais da existência, os que nos movem em direção ao que viemos fazer e produzir enquanto amamos e trabalhamos relativamente bem como Freud citou. A Psicanálise tem se mostrado um ótimo caminho nessa busca.

E então, Homo Office Digitalis? Pronto para se haver com o seu desejo e o protagonismo da sua existência? Lidar com o mágico, o ordinário e o trágico da vida, com mais saúde mental?