Neste espaço você irá ter um conteúdo onde vamos discutir temas que têm tudo a ver com a sua angústia. O divã será o blog e o psicanalista é o grupo de autores que vão escrever os artigos que irão abordar filmes, livros, músicas e o cotidiano, mas tudo ligado à saúde mental. Você irá perceber que não está sozinho. Vamos dar as mãos para caminharmos na jornada do autoconhecimento. Isso porque esse é um blog de psicanálise para você!
Por Gabriel Fallaci Fernando, formado em Filosofia e mestrando em Literatura Portuguesa, Psicanalista e Pesquisador - @fallaci.f
Dentro de cinco dias fará um mês desde que um jovem de 13 anos esfaqueou ao menos seis pessoas – quatro professoras e dois alunos – em uma escola estadual localizada no bairro Vila Sônia e que, em decorrência disso, acabou ocasionando a morte de uma das professoras esfaqueadas, Elisabeth Tenreiro, de 71 anos[1].
Quando lemos ou ouvimos uma notícia assim – sobretudo pela forma específica como as mídias impressa, virtual e televisiva veiculam a informação –, num primeiro momento, tendemos a focar naqueles que foram feridos, naquela que foi morta. O impacto é imediato, pois pessoas foram agredidas, traumas foram produzidos, medos e incertezas trazidos à tona. Mais do que isso, o sentimento de “justiça” passa a imperar no discurso coletivo, vinculado a este sentimento vem a raiva, a indignação. Deseja-se a cabeça do responsável por um ato tão cruel, tão desumano, tão mortal.
Tendo isso em mente, é justamente onde pretendo provocá-los, leitores. Vocês conseguem perceber que a todo momento, inclusive na grande maioria dos discursos de figuras políticas “preocupadas” com a situação, o que vemos é um grande foco em relação àqueles que foram atacados? Percebem que existe um sujeito que foi negligenciado num primeiro momento? Percebem que uma figura fica, aparentemente, desfocada e desviada das preocupações e olhares solidários?
Quando escutamos a reportagem nos diversos veículos televisivos, é cenário mais do que comum ouvirmos o jovem de 13 anos responsável pelas atitudes acima mencionadas sendo chamado de “O agressor”. E neste momento você pode, legitimamente, se perguntar: “mas ele não cometeu uma agressão? Quem agride não é agressor?”. Contudo, a questão, apesar de parecer ser dotada de muita lógica, contém uma grande falha, uma grande – e cara noção à Psicanálise – falta, a saber: quem é, de fato, este jovem? O que o levou a cometer uma atitude tão violenta e tão extrema? Por que uma criança de 13 anos vai à escola com uma faca guardada em suas coisas e esfaqueia alunos – seus semelhantes – e professoras – figuras de autoridade –?
Insisto na importância das perguntas, da investigação reflexiva – ainda que talvez nem conclusiva – sobre este jovem considerando o fato de que antes mesmo de haver a mínima possibilidade de o entendermos – e não de justificarmos suas ações –, um significante (o adjetivo) já havia sido marcado a ferro em sua pessoa: “O agressor”.
Não vimos, em nenhum momento, qualquer manifestação ou expressão do garoto de 13 anos; mais do que isso, em verdade, acredito que seria até difícil para ele falar alguma coisa, pois parece que foi tão fortemente sentenciado ao silêncio dentro de sua condição de vida que o único meio que encontrou para comunicar alguma mensagem às demais pessoas foi por meio de uma agressividade mais do que latente. Por isso mesmo este caso é e se faz tão importante não só a nível clínico, como a nível vivencial e social, pois o silêncio que se adensou a ponto de virar agressão contra pessoas – assim como o próprio menino – inocentes é o objeto pelo qual a sociedade o julgará fortemente. Em contrapartida, o ato de falar, de usar a palavra, está sendo pervertido pelo Estado e adotado em sua perversão por grande parte das pessoas, pois ao usar de “O agressor”, sentencia-se o presente e o futuro desse indivíduo dentro da sociedade[3].
Como disse, o uso da palavra, da comunicabilidade, acabou sendo pervertido pelo Estado e, mais do que nunca, “[...]a palavra não encobre o mal-estar, o desagradável próprio de cada um” (MIRANDA; VASCONCELOS e SANTIAGO, 2006, s/p)[4], o que ela faz neste caso é justamente intensificar os problemas, produzir significativas e impactantes ressonâncias na vida desse indivíduo que não deixou de existir. Considerando que a vida deste jovem não se esgotou, faz-se necessário, imperativo e ético que tenhamos uma consciência importante e também fundamental, a de invertermos processos cotidianos, ao invés de delimitar, nomear, adjetivar, colocarmo-nos à serviço de ouvir, apreender o que é falado por aquele que manifesta comportamentos que escancaram o fato de que palavras já não são mais funcionais.
Não é porque o menino tem 13 anos e manifestou um comportamento de cunho extremamente agressivo e letal que devemos ignorar o que há por trás disso, devemos, isso sim, lembrar que não apenas quando nascemos nos comunicamos “[...]por meio de um grito como manifestação do desamparo absoluto no qual nossa vida foi lançada. [Como também que] é somente a resposta do Outro que possibilita a tradução significante do grito como chamado” (RECALCATI, 2016, p. 35), mas quando mais velhos também passamos por essa necessidade de sermos “traduzidos” e justamente por isso precisamos, também, “[...]saber responder ao chamado, não deixar o grito cair no vazio, socorrer a vida que grita, traduzir o grito como pedido de amor” (Ibidem, p. 35)[5].
Por fim, o convite que faço a quem está lendo é o de entender como é valioso e, ao mesmo tempo, fundamental voltarmos nosso olhar e nossa reflexão à singularidade do sujeito observado, sujeito este que é composto, em sua essência, não apenas de uma parte biológica, mas que recebe todas as impressões e marcas que a sociedade nele deposita[2]. Mais do que isso, precisamos dessa consciência crítica de forma a não cairmos nos joguetes e intenções perversas do Estado de eliminar problemas e estigmatizar seres como forma de exemplo para os demais, pois é fato que ao considerarmos “[...]que o papel [social] funciona como uma espécie de armadura invisível que recobre o corpo, modelando-o e reduzindo o seu espaço de movimentação livre na direção de ações socialmente permitidas ou desejáveis para a manutenção do status quo” (NETO, 1985, p. 30, grifo do autor)[6], podemos observar, também, a tentativa de taxar uma criança de 13 anos como “O agressor” sem considerar todas as possíveis causas que marcaram esta individualidade ao ponto de haver um abandono da palavra e o uso da agressividade e da morte para expressar um pouco de todo o sofrimento interno que o acometia.
Não silenciemos uma individualidade usando de uma mera palavra, não coadunemos com os estratagemas do Estado que visam mascarar a ineficiência tanto de seu funcionamento, como também da insuficiência que muitas famílias proporcionam a seus pequenos integrantes, perguntemos, questionemos, ouçamos, apenas assim, curiosamente, quebraremos o silêncio ensurdecedor.
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[1] Para mais detalhes e informações acerca do caso, sugiro a leitura das duas reportagens presentes no site da Band indicadas a seguir: https://www.band.uol.com.br/noticias/bora-brasil/ultimas/jovem-de-13-anos-esfaqueia-pelo-menos-tres-pessoas-em-escola-de-sao-paulo-16591732; e https://www.band.uol.com.br/noticias/professora-morre-ataque-com-faca-escola-sp-16591770.
[2] Pensando no que proponho ao leitor, aproveito e indico também o artigo O transtorno de ansiedade (TA) na perspectiva da psicanálise, de Florência Cavalcante de Sousa Ferreira a seguir referenciado: FERREIRA, Florência Cavalcante de Sousa. O transtorno de ansiedade (TA) na perspectiva da psicanálise. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano 05, Ed. 12, Vol. 02, pp. 118-128. Dezembro de 2020. ISSN: 2448-0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/psicologia/transtorno-de-ansiedade.
[3] Aproveitando do espaço, recomendamos ao leitor a leitura do excelente artigo Maria Ignez Costa Moreira intitulado Pesquisa-intervenção: especificidades e aspectos da interação entre pesquisadores e sujeitos de pesquisa, bem como todos os artigos que compõem o livro a ser referido a seguir: MOREIRA, Maria Ignez Costa. Pesquisa-intervenção: especificidades e aspectos da interação entre pesquisadores e sujeitos de pesquisa. In CASTRO, Lucia Rabello de; BESSET, Vera Lopes (organizadoras). Pesquisa-intervenção na infância e juventude. – Rio de Janeiro: Trarepa/FAPERJ, 2008. Disponível em: https://naueditora.com.br/ebook_gratuito/pesquisa-intervencao-na-infancia-e-juventude/.
[4] MIRANDA, Margarete Parreira, VASCONCELOS, Renata Nunes e SANTIAGO, Ana Lydia Bezerra. Pesquisa em psicanálise e educação: a conversação como metodologia de pesquisa. In: Psicanálise, educação e transmissão, 6., 2006, São Paulo. Disponível em: <https://www.proceedings.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=MSC0000000032006000100060&lng=en&nrm=abn>.
[5] RECALCATI, Massimo. Não é mais como antes: elogio do perdão na vida amorosa. Tradução Joana Angélica D’Avila Melo; revisão técnica Marco Antonio Coutinho Jorge. – 1.ed. – Rio de Janeiro: Zahar, 2016.
[6] NETO, Alfredo Naffah. O inconsciente – um estudo crítico. São Paulo: Ática, 1985.