Mesmo quem não é especialista em mosquito conhece bem – ou ao menos já ouviu falar – do Aedes aegypti, transmissor da dengue, zika e chikungunya no Brasil. O atual surto de dengue, que já ultrapassa 6,5 milhões de casos prováveis e 5,4 milhões confirmados só em 2024, reforça a importância de medidas como a vacinação e a eliminação de criadouros para reduzir a circulação do vetor. Em meio a tantas doenças transmitidas por mosquitos, fica a dúvida: por que os vírus infectam algumas espécies e outras não? Será que outros mosquitos também podem se tornar uma ameaça no futuro?
As respostas, segundo a bióloga e especialista em mosquitos Rafaella Sayuri Ioshino, que faz pós-doutorado no Laboratório de Parasitologia do Instituto Butantan, estão nas características evolutivas do inseto e nas mutações virais: “O Aedes aegypti se infecta porque existe uma interação entre as suas proteínas e as dos vírus. Como chave e fechadura, esse reconhecimento entre as proteínas permite que o vírus entre nas células do mosquito”, explica.
Esse processo ocorre quando a fêmea do mosquito, que precisa de sangue para produzir seus ovos, se alimenta de uma pessoa infectada. O sangue fica armazenado no intestino médio do inseto, onde é digerido, e as partículas virais infectam as células daquele tecido. O vírus então começa a se replicar e atinge a hemolinfa (circulação), infectando tecidos secundários como a glândula salivar. Ao picar outra pessoa, o mosquito transmite as partículas virais por meio da saliva.
Quando o ser humano infectado é picado por uma espécie que não tem capacidade de transmissão (ou seja, as proteínas virais não reconhecem as proteínas do mosquito), o vírus acaba morrendo dentro do mosquito por não conseguir entrar nas células – ambiente indispensável para sua sobrevivência.
No entanto, mutações podem permitir que os vírus se repliquem em outras espécies de mosquito. O problema se intensifica quando insetos periurbanos ou silvestres se adaptam às regiões urbanas e, consequentemente, atingem um maior número de pessoas – como é o caso do Aedes aegypti. Cada fêmea pode colocar em média 100 ovos, chegando a uma média de 400 por mês. No atual surto de dengue, Rafaella conta que chegou a coletar 2 mil larvas em uma única área comercial.
“No meio urbano, o mosquito possui condições muito mais favoráveis para realizar alimentação sanguínea e colocar os ovos. Se uma fêmea for infectada no início da vida adulta e conseguir viver por um mês, por exemplo, ela pode se alimentar no mínimo quatro vezes e transmitir o vírus para pelo menos quatro pessoas”, diz a cientista.
Mais preocupação
Embora o Aedes aegypti seja o principal transmissor da dengue no Brasil, ele não é o único mosquito que transmite doenças. O Aedes albopictus, por exemplo, é o principal vetor da dengue no sudeste asiático. No Brasil, essa espécie ainda predomina no meio silvestre, mas têm migrado para regiões periurbanas (entre espaços rurais e áreas urbanas) e pode, eventualmente, se adaptar às cidades como o Aedes aegypti.
“Nas coletas de larvas realizadas no meio urbano, costumávamos encontrar somente a espécie Aedes aegypti. Hoje, já conseguimos coletar as espécies Aedes albopictus ou Aedes fluviatilis, por exemplo”, aponta a bióloga Rafaella Ioshino.
Outro arbovírus que tem chamado atenção é o vírus da Febre do Oropouche, que tem causado um surto no Amazonas desde o início do ano. Ele pode ser transmitido no meio urbano pelo Culex quinquefasciatus, o pernilongo comum, e no meio silvestre pelo Culicoides paraensis (maruim). A doença é semelhante às outras arboviroses e costumava aparecer em casos isolados nos estados da região amazônica, mas novos casos têm sido registrados em outros estados, como Espírito Santo, Rio de Janeiro, Santa Catarina, Piauí, Roraima, Minas Gerais, Amapá, Bahia e Pernambuco.
Diante da possibilidade de patógenos infectarem novos mosquitos e do impacto das mudanças climáticas na proliferação desses insetos, que têm aparecido em regiões onde antes não circulavam, a especialista ressalta que a colaboração da população é essencial para reduzir os riscos de transmissão de arboviroses.
“Nós vivemos em um país com condições favoráveis para os mosquitos se desenvolverem o ano inteiro, principalmente nas regiões Norte e Nordeste. Se todos criassem o hábito de limpar as calhas, tampar adequadamente os reservatórios de água, realizar o descarte correto dos lixos, retirar água parada e lavar os reservatórios, pelo menos uma vez por semana, essas doenças seriam combatidas com maior facilidade”, ressalta a cientista.
Vale lembrar que, ao esvaziar os recipientes, o ideal é depositar a água no solo ou na terra dos vasos, locais onde a água vai secar, em vez de jogar no ralo. Assim, sem contato com a água, as formas imaturas do mosquito não conseguem sobreviver.
Mais de 400 anos
Os primeiros registros de arboviroses no mundo datam do final do século XVI. Segundo Rafaella, acredita-se que inicialmente os arbovírus circulavam no meio silvestre e infectavam mosquitos, aves e pequenos mamíferos. Porém, com o aumento da população e desmatamento, os mosquitos começaram a ter mais contato com humanos, dando início à circulação dos arbovírus no meio urbano.
O vírus da febre amarela foi o primeiro arbovírus descrito no mundo. De origem africana, ele alcançou o Ocidente por meio do tráfico de escravizados a partir do final do século XVI. Possivelmente, a dengue chegou às Américas no mesmo período, mas os primeiros registros formais datam de 1943 no Japão. Outros arbovírus como zika e chikungunya são mais recentes, descobertos na África em 1947 e 1952, respectivamente.
No Brasil, a primeira epidemia de arbovírus foi causada pela febre amarela no século XVII (1685), na região de Pernambuco, levando à primeira campanha sanitária em 1690. Já os primeiros casos de dengue foram comprovados na década de 1970, enquanto os vírus da chikungunya e zika só chegaram ao país muito depois, em 2014 e 2015, respectivamente.
Foram séculos até se demonstrar, de fato, que o vetor da dengue – e posteriormente de zika e chikungunya – era o Aedes aegypti, conhecimento publicado em 1906. “Antigamente, as ferramentas eram bem diferentes e limitadas. Hoje, com o avanço da ciência, conseguimos coletar um mosquito no campo, identificá-lo e determinar com qual vírus ele está infectado”, afirma a especialista.
O Aedes aegypti também foi descrito como vetor da febre amarela urbana, mas esse meio de transmissão não é registrado no Brasil desde 1942. O último surto da doença, ocorrido em 2017, foi considerado de origem silvestre, sendo o vírus transmitido por mosquitos dos gêneros Sabethes e Haemagogus.
“Sem dúvidas, o que controlou a disseminação da febre amarela e reduziu os surtos no Brasil foi a vacinação. A inclusão da vacina no calendário nacional de imunização ajudou a erradicar a circulação do vírus no meio urbano”, destaca a cientista.
Um recente estudo da Universidade Federal do Pará, no entanto, indicou que o Aedes albopictus também é um vetor competente para febre amarela, isto é, o vírus é capaz de infectá-lo em condições laboratoriais. Embora não haja comprovação de infecção natural, a pesquisa acende um alerta para a potencial reemergência da febre amarela urbana, já que o mosquito tem se adaptado às regiões periurbanas.
“Infelizmente, não temos uma ferramenta única capaz de controlar as arboviroses. Em relação à imunização, é necessário ter uma vacina para cada arbovírus. Porém, quando eliminamos o criadouro (água parada), reduzimos a população de várias espécies de mosquitos e, consequentemente, diminuímos a circulação dos arbovírus entre humanos. Então, por que não combinar a vacinação com a retirada dos criadouros? Embora algumas espécies de mosquitos ainda não representem risco para a transmissão de doenças, não precisamos esperar acontecer para começar a tomar providências e se prevenir”, conclui Rafaella.