Pesquisadores do Programa Grandes Mamíferos da Serra do Mar apresentam os primeiros resultados de um projeto-piloto que visa prevenir e reduzir conflitos entre pequenos produtores rurais e antas (Tapirus terrestris). A iniciativa, inédita na Serra do Mar, instalou barreiras físicas em duas propriedades em São Miguel Arcanjo (SP) e, após seis meses, os resultados demonstram a efetividade da intervenção, minimizando o acesso das antas às áreas de fruticultura.
O projeto-piloto, que faz parte da frente de atuação de Coexistência Humano-fauna do programa com apoio do WWF-Brasil, tem como principais objetivos reduzir os prejuízos financeiros causados pelo acesso das antas às propriedades e evitar que os produtores rejeitem a fauna silvestre ou até mesmo abatam animais por retaliação.
O projeto-piloto é fruto de mais de nove anos de estudo das interações entre pessoas e fauna silvestre que, incluiu mais recentemente um mapeamento das áreas prioritárias para intervenção na Serra do Mar para redução de conflito. Uma Teoria da Mudança - estratégia de planejamento, monitoramento e avaliação - foi elaborada para ajudar a medir o impacto das ações de coexistência.
Dentre as áreas apontadas como prioritárias, o entorno do Parque Estadual Carlos Botelho, em São Miguel Arcanjo, é onde há alta incidência de conflito entre pequenos produtores e as antas, que entram na área de cultivo para se alimentar. Segundo os pesquisadores, o consumo de frutas nessas áreas de cultivo não está, necessariamente, associado à falta de alimento na floresta, mas pela facilidade e disponibilidade da fruta, oportunizada pela proximidade das áreas produtivas com a floresta.
Para a realização do projeto-piloto, foram instaladas cercas elétricas adaptadas ao peso e tamanho das antas em duas propriedades rurais com plantação de uva. De acordo com a pesquisadora Mariana Landis, coordenadora do Programa Grandes Mamíferos da Serra do Mar, as cercas funcionam como uma barreira física sem oferecer riscos às antas e outros animais, nem às pessoas.
"Existem diferentes possibilidades de intervenção, mas a cerca elétrica foi a alternativa que a comunidade nos indicou, por ser efetiva segundo a experiência deles. Dessa forma, optamos por utilizar a mesma estratégia, porém trazendo maior tecnologia e eficiência, considerando custo-benefício e resultado a curto prazo. O sistema elétrico foi adaptado para um animal na altura e peso da anta, e tem a função apenas de impedir a passagem, mas sem causar ferimento”, explica Mariana.
Para monitorar a efetividade da barreira física, além do depoimento dos produtores, foram instaladas armadilhas fotográficas, como são chamadas as câmeras que disparam automaticamente por sensor de movimento e infravermelho, gerando fotos e vídeos dos animais a cada vez que passam em frente dos equipamentos.
“Com os registros, conseguimos comprovar que a barreira foi efetiva, impedindo a anta de entrar na área de cultivo de uva. Mas, também mostraram que há outros animais acessando as áreas, como o quati e o gambá, que também são potenciais comedores de frutas. Com essas informações, será possível avaliar futuramente se a anta é de fato a principal responsável pelo prejuízo na produção. Os resultados já são animadores, incluindo uma maior participação dos produtores nas ações”, comemora a pesquisadora.
Mariana acrescenta que a “abordagem de coexistência humano-fauna permite um olhar ético para as interações entre humanos e animais silvestres, considerando a conservação das espécies, mas também o bem-estar humano. Para falar da conservação da anta, não podemos ignorar o sentimento ruim causado pelo prejuízo financeiro ou emocional ao produtor”.
Felipe Feliciani, Analista de Conservação do WWF-Brasil, organização apoiadora do Programa, ressalta o potencial da abordagem de coexistência humano-fauna para geração de benefícios mútuos. “Temos muitos exemplos exitosos em outros países e regiões do Brasil onde o WWF atua com projetos de coexistência humano-fauna. É muito difícil promover conservação sem olhar para o fator humano. Esse projeto realizado pelo Programa Grandes Mamíferos da Serra do Mar envolve duas realidades bem desafiadoras: por um lado, temos pequenos produtores cuja subsistência depende da sua produção e, de outro, temos uma espécie ameaçada de extinção que já sofre com outras pressões além do abate por retaliação, como a caça ilegal, atropelamento e perda de habitat. Ao considerar as especificidades dessas duas realidades, as soluções se tornam mais efetivas e as oportunidades, mais proveitosas”, explica o analista.
Feliciani também destaca a importância do projeto na região. “Esse é o primeiro projeto com a abordagem coexistência humano-fauna com intervenção na Mata Atlântica, na região da Serra do Mar, onde há populações importantes para a conservação da espécie no bioma. Mapear e mitigar as ameaças à espécie, assim como mapear e aproveitar as oportunidades é essencial para garantir a existência da anta na Mata Atlântica a longo prazo”, complementa.
A frente de atuação Coexistência Humano-fauna
De acordo com Roberto Fusco, coordenador técnico-científico do Programa Grandes Mamíferos da Serra do Mar, a promoção de uma coexistência humano-fauna é uma demanda urgente nas localidades da Serra do Mar onde temos atuação. “Hoje, com amplo arcabouço técnico-científico, construímos de forma coletiva e participativa a teoria da mudança, cujas ações apresentaram os primeiros resultados. Além de visar a redução e prevenção dos conflitos humano-fauna, também mapearemos as oportunidades para potencializar nossos esforços de conservação, como a observação de fauna, um segmento do turismo de natureza que vem ganhando cada vez mais adeptos. Ou seja, queremos que a presença da anta passe de um problema para uma oportunidade”, explica o pesquisador.
Fusco acrescenta que o próximo passo é avaliar os resultados para formatar um projeto definitivo e, posteriormente, aumentar o número de propriedades beneficiadas, ampliar as ações de conscientização, e iniciar ações com outras espécies incluídas na frente de atuação de Coexistência Humano-fauna do Programa, que são o queixada, a onça-pintada e a onça-parda.
“O abate de grandes mamíferos por retaliação, devido aos prejuízos emocionais ou financeiros, é preocupante, mais uma ameaça para animais que correm o risco de serem extintos. Mas, no Brasil, há casos bem-sucedidos de regiões que viram a sua realidade ser transformada por ações de mitigação de conflito, promovendo a coexistência, e trazendo benefícios à biodiversidade às comunidades. Queremos proporcionar essa mesma transformação na Serra do Mar”, finaliza o coordenador.
Além do WWF-Brasil, o Programa Grandes Mamíferos da Serra do Mar também conta com o apoio da Fundação Grupo Boticário.